Os crimes infames contra o jornalismo

Os crimes infames contra o jornalismo

Por Celso Japiassu

A liberdade de imprensa é um dos mais importantes valores das democracias, mas nada irrita tanto os que estão no poder ou os que se julgam poderosos do que uma notícia que vai contra os seus interesses. Esta é a razão da pressão e do boicote de governos, dos políticos e do crime organizado sobre a mídia e os jornalistas. Os telefonemas e visitas ameaçadores podem se transformar e muitas vezes se transformam em assassinato. Tem sido assim em todos os países.

No ano passado pelo menos 124 jornalistas foram assassinados no mundo, tornando-se o ano mais mortífero para a profissão nas últimas três décadas, segundo dados do Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). Este número representa um aumento de 22% em relação ao ano anterior e reflete o agravamento dos conflitos internacionais, da instabilidade política e da criminalidade global. A maioria das mortes ocorreu em zonas de conflito, especialmente na Faixa de Gaza, onde 85 jornalistas perderam a vida, sendo 82 deles palestinos — o que representa cerca de 70% de todas as mortes de jornalistas.

Outros países com números elevados de assassinatos de jornalistas incluem Sudão e Paquistão (seis cada), México (cinco), além de casos registrados na Síria, Iraque, Haiti, Colômbia, Honduras, Mianmar, Índia, Bangladesh, Nigéria, Moçambique, Ucrânia e Rússia

Quatrocentos jornalistas foram presos e levados às mais diferentes masmorras do mundo. Na Europa, onde haveria maior liberdade de imprensa quando comparada com outras regiões, segundo a ONG Repórteres Sem Fronteira, os jornalistas também não escapam de atentados, chantagens, ameaças e mesmo de serem mortos.

Dez jornalistas assassinados num único ano, em 2017, fizeram tocar o alarme na União Europeia. Na Bulgária, Victoria Marinova foi violada antes de ser morta. Daphne Caruana Galizia, que investigava lavagem de dinheiro por membros do governo em Malta, foi morta por uma bomba que explodiu dentro de seu carro enquanto ela dirigia. E na Eslováquia Ján Kuciak e sua noiva Martina Kusnírová foram assassinados a tiros na casa em que viviam. Ele investigava a corrupção de empresários e políticos.

Além de sofrerem assédio, ameaças e agressões sexuais, o número de mulheres jornalistas assassinadas também tem aumentado.

O Brasil ocupa lugar de destaque. Um dos crimes mais bárbaros completou 23 anos em 2025, o assassinato do repórter Tim Lopes, capturado por traficantes enquanto fazia uma reportagem na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

 Duas décadas depois, o inglês Dom Philips, radicado no Brasil, foi morto na Amazônia.

Cinco balas

Em pleno centro da civilizada cidade de Amsterdam, na Holanda, o jornalista investigativo Peter De Fries foi morto com cinco tiros, um deles na cabeça. Peter escrevia sobre corrupção e narcotráfico. O caso chocou a Holanda e a Europa por ter ocorrido num país sem grandes conflitos sociais e com imprensa livre. Mostrou também o risco crescente a que se expõem os jornalistas quando tratam de casos que envolvem corrupção e narcotráfico.

“Os vínculos entre traficantes de drogas e políticos permanecem, e jornalistas que se atrevem a cobrir essas e outras questões relacionadas continuam sendo alvos de assassinatos bárbaros”, disse Repórteres sem Fronteira.

O juiz e promotor italiano Nicola Grattieri chamou a atenção para o fato de que, segundo ele, não só a Holanda como também a Alemanha, a Bélgica e a França tratam com descaso a influência do crime organizado e sua capacidade de desestabilizar a sociedade.

A União Europeia se disse alarmada com a incidência desses crimes e a vice-presidente da Comissão Europeia responsável pela agenda de valores e transparência até 2024, Věra Jourová, planejou medidas para fortalecer a liberdade de imprensa, tornar as redes sociais mais responsáveis e proteger o processo democrático.

A ONU instituiu o 3 de maio como Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e enfatizou que nenhuma democracia está completa sem o acesso a informações transparentes e de confiança.  Acrescentou que esta é a base que permite construir instituições justas e imparciais, ao responsabilizar os líderes e ao afirmar a verdade a quem está no poder.

Veja Também:  Morre Bernard Cassen, articulador do 1º Fórum Social Mundial

“Os fatos, e não as mentiras, devem guiar as pessoas quando escolhem os seus representantes. No entanto, embora a tecnologia tenha transformado a forma como recebemos e partilhamos informações, às vezes também é usada para enganar a opinião pública ou para alimentar a violência e o ódio”, disse o secretário-geral das Nações Unidas Antônio Guterres.

Os governos

Os jornalistas sofrem também pressão, ameaça e chantagem dos governos. A Hungria vive em estado de emergência e a legislação pune a divulgação de notícias falsas. O primeiro-ministro Viktor Orbán, de extrema direita, tem usado essa legislação contra o que é publicado com críticas desfavoráveis a ele próprio ou a seu governo. A Polônia e a Eslovênia, que se situam na órbita de influência da Hungria, seguem o exemplo.

No Reino Unido, em cumplicidade com os Estados Unidos, o caso Julian Assange foi um exemplo de perseguição a um jornalista e à independência profissional que todos os jornalistas teriam o dever de exercer.

Nos últimos cinco anos, 22 jornais pelo mundo foram fechados devido à pressão de governos em represália a matérias publicadas contra seus interesses. Muitos conseguiram sobreviver precariamente em edições online depois de terem colaboradores presos, sofrerem censura direta, perseguições fiscais e muitos processos judiciais que os inviabilizaram. Fica às vezes no público a impressão de que o fechamento foi devido à má administração ou desinteresse dos leitores quando na verdade foram sufocados.

O site russo Proekt.Media opera na modalidade de sites de guerrilha, sem redações tradicionais e financiado por doações. Quando anunciou que iria publicar uma reportagem sobre o enriquecimento ilegal do ministro do interior do governo Putin, Vladimir Kolokoltsev, sofreu uma batida policial, três dos seus jornalistas foram presos, entre eles o editor-chefe Roman Badanin. Foram submetidos a interrogatório policial, apreendidos seus computadores e telefones celulares antes de serem liberados. A intimidação do Proekt.Media é parte da perseguição que vem sendo feita contra jornalistas pelo governo russo.

No que a polícia chamou de crime quase perfeito, o jornalista grego Yorgos Karaivaz foi morto com dez tiros, na porta de sua casa. Foi o quarto jornalista assassinado na União Europeia em tempos recentes. Ele fazia uma reportagem sobre uma rede de acompanhantes de luxo da qual fazia parte uma famosa estrela da televisão.

“Mataram Yorgos mas ainda existem sete mil jornalistas vivos na Grécia. Não vamos esquecê-lo e vamos trabalhar para descobrir tudo sobre esse crime e transformar em notícia o que for descoberto”, disse Katia Makri, sua colega na rede de televisão em que Yorgos trabalhava.

Na imagem, um jornalista palestino utiliza seu telefone celular para transmitir ao vivo em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, em 27 de dezembro de 2023 / Said Khatib / AFP

Tagged: ,