A América Latina e sua alma

Nesta semana em que o novo presidente dos Estados Unidos despeja uma portaria de inimaginável crueldade determinando que pessoas trans sejam detidas em prisões masculinas ou transferidas das cadeias femininas, em seu país, caso já estejam presas; na semana em que se homenageia mais uma vez Martin Luther King e seu discurso (dia 20/01), aquele histórico, do “Eu tenho um sonho”, exercitando direitos humanos, e na mesma semana em que o aguerrido presidente da Colômbia, Gustavo Petro, envia uma carta aberta ao novo presidente estadunidense explicando ao recém-mandatário qual é o significado do espírito latino-americano; nesta mesma semana vai estrear entre nós, nas telonas (no dia 30), o filme da colombiana Taboada-Tapia, Alma do deserto, protagonizado pela personagem Georgina, da nação Wayúu. Um trabalho sobre a comunidade LGBTQIA+ na América Latina.
As coincidências não existem, escreveu Freud. Essa e outras confluências apontando sombras, tensões e, sobretudo maldades planejadas e perversidades desumanas estão aí, nesse começo de ano, gestadas há tempos. “Os discursos de bilionários e novos governantes que estão determinados a atacar a comunidade trans ajudam a construir a transfobia”, lamenta a diretora do filme, Taboada-Tapia.
Seu filme foi premiado com o Queer Lion no Festival de Veneza de 2024, na categoria Giornate degli Autori, e ganhou no Festival de Havana, na categoria Documentários, o prêmio de melhor filme com temática queer.
Alma do deserto acompanha Georgina, uma mulher indígena idosa, trans, lutando para obter o direito de ter reconhecida sua carteira de identidade, depois de ter perdido o documento em um incêndio provocado pelos próprios vizinhos que não aceitavam a sua presença. A coragem de Georgina e sua resiliência serena e inabalável são notáveis, mantidas durante todo o percurso que faz para recuperar o documento que vai permitir seu direito de votar nas eleições colombianas.
A marginalização social de Georgina, sua própria etnia e a cultura indígena que a rejeita, compõe o quadro de pobreza no norte da Colômbia, na vasta, linda e isolada região de La Guajira. A transfobia que permeia seus pares, na aldeia, se estende também aos funcionários das estruturas de poder público em outro diapasão. Ocasionalmente, podem não respeitar, falsear ou dificultar a entrega de documentos aos indígenas – pior ainda no caso de identidade com troca de gênero. No caso de Georgina, ela viveu lutando durante 45 anos da vida para conseguir a carteira com seu nome feminino.
Alma no deserto é um poema. Um filme contemplativo, de grande beleza plástica, com uma hora e vinte minutos de duração. Não espere o espectador lances dramáticos, violência ao modo do desgastado cinema norte-americano no modelo caubói-e-os-bandidos. Nas longas sequências das vastidões do deserto, a caminho de Uríbia, capital indígena colombiana, Georgina é banhada por uma luz triste e bela, ora diurna, ora noturna, com crepúsculos, sonhos, pesadelos e fantasia, e uma linha de horizonte que parece ser inalcançável.
“Não sairemos nunca mais daqui”, diz uma moça indígena, à beira de um poço, em pleno deserto, enquanto serve água para Georgina beber. Segundo ela, o poço é de “propriedade familiar. E não vamos sair daqui, com ou sem água no poço.”
Em outra parada do seu périplo, ela retira delicadamente pequenas peles ao redor das unhas das mãos, para se cuidar, e ajeita seus berloques, as pulseiras e os colares, mas sem qualquer afetação. Em outra pausa, Georgina lembra do seu companheiro de anos atrás, o único na sua vida amorosa e por quem começara a se “apaixonar”, diz ela. Mas ele deixou-a para viver com uma esposa. “Talvez eu não fosse a pessoa para ele”, diz quase que para si mesma.
O recado de Georgina, uma autêntica alma do deserto – personagem real desse filme e dessa história pungente – é forte.
Com o seu papel de identidade atualizado guardado na bolsa, já tendo votado, e com ele em punho, ela está radiante por possuir a chave com a qual poderá desfrutar serviços estatais de saúde pública e a compra de alimentos com desconto em um programa tipo Bolsa Família. Simples e cândida, Georgina diz, comemorando o feito: “Eu sempre fui fiel a quem eu sou.”
Alma do deserto é um filme imperdível. Ao assisti-lo, lembramos do presidente Gustavo Petro, xingado de “hipócrita” pela vergonhosa mídia brasileira corporativa, esta semana, com sua carta ao presidente-imigrante: “Você não gosta da nossa liberdade, tudo bem. Pois eu não aperto a mão de escravistas brancos.”
O novo presidente do Norte precisa conhecer Georgina e ouvir Petro.

Jornalista.