A energia popular nas feiras de rua

A energia popular nas feiras de rua

Todo Dia é Dia de Feira*, com uma hora e vinte minutos de duração, pode ser inscrito na fronteira de filme de média-metragem que, nesse caso, discorre sobre um tema simpático e antigo, arte da nossa cultura popular: as feiras livres, nas ruas das cidades, e as rotinas dos feirantes e de suas famílias. O filme, um pequeno retrato desse universo de negócios que se perpetua há mais de um século, é uma crônica cinematográfica leve e sensível que atrai o espectador.

É um documentário sobre um hábito cultural popular, de rua, cujas raízes vêm do período colonial, quando a economia interna do país começava a se desenvolver. Mas as feiras livres só foram institucionalizadas em São Paulo, no governo de Washington Luís, nos idos de 1914, oficializadas como algo que já era reconhecido na sua informalidade desde meados do século 19.

Todo Dia é Dia de Feira é narrado pela sua diretora, a carioca Silvia Fraiha, e considerado por ela como um projeto de cinema muito pessoal. Desde criança Silvia é apaixonada pela atmosfera das feiras de rua e esse é o seu primeiro trabalho solo como realizadora, depois de co-dirigir Rio de Cinemas e Virando Bicho.

Realizadas em 2021, as filmagens começaram nas madrugadas das feiras livres dos bairros da Gávea, Copacabana, Ipanema, Jardim Botânico, Irajá e Caxambi, e no Ceasa, no Mercado Municipal do Rio e nas comunidades do Caju e Rocinha. Homens e mulheres usando a força física para carregarem para as camionetes e pequenos caminhões os enormes caixotes de legumes, frutas, verduras, folhas, grãos, sucos, queijos, farinhas, carnes, peixes de alta qualidade e outros alimentos, ingredientes e acessórios: roupas, panos de chão, sandálias de borracha, tudo escolhido com cuidado, comprado sem intermediários, diretamente dos produtores.

Nos dias de feira de cada bairro, em geral os preços nas gôndolas dos supermercados diminuem. Tornam a subir nos dias subsequentes. Com frequência, a qualidade dos produtos das grandes cadeias de mercados não chega aos pés do que é oferecido nas feiras livres, instituição nacional com suas barracas coloridas de onde vêm aromas apetitosos de pastéis feitos na hora, das frutas perfumadas e frescas – em geral bem mais frescas que aquelas oferecidas nos grandes mercados –, e dos variados temperos artesanais nem sempre encontrados nas grandes lojas.

As imagens da primeira parte do filme trazem os centros de atacado às duas horas da manhã, quando os clientes feirantes começam a chegar aos entrepostos. Mais tarde, por volta das seis horas, as barracas já estão erguidas e os mesmos homens e mulheres se encontram em plena atividade atendendo clientes muitas vezes antigos e fiéis que vão para a praia ou para a missa. São bonitas as imagens obtidas com a luz do nascimento do dia carioca à beira do mar e situado entre montanhas.

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Propositadamente simbólicas, as imagens que retratam a simplicidade e modéstia do despertar no universo das feiras urbanas comentadas pelo entrevistado no alto da Rocinha e, em contraposição, no horizonte, os bairros ainda adormecidos da burguesia – Ipanema, Leblon, Lagoa Rodrigo de Freitas.

Todo Dia é Dia de Feira faz o espectador relembrar a dura realidade da desigualdade social. Neste caso, para as mais de oito mil famílias do Rio de Janeiro que dependem do negócio das feiras.

Gritos, chamamentos, slogans e cantorias apregoam as mercadorias nesse cotidiano animado e colorido dos feirantes profissionais. Arnaldo, Luiz, Fernando e Cristina são os entrevistados que falam sobre suas trajetórias e ilustram histórias de bastidores. Assim é renovada, a cada manhã, a tradição cultural que desde há algum tempo se diz ameaçada por contar com um apoio público insuficiente, pela ausência de representatividade em órgãos reguladores, pela falta de um mínimo de higiene para uso pessoal dos feirantes, de salubridade para eles e para elas enquanto trabalham, e pela concorrência voraz dos supermercados.

As dificuldades por passarem horas diárias sem contar com um banheiro químico, por exemplo, é uma das principais reivindicações dos feirantes. Nesse mundo em que a solidariedade costuma ser mais forte do que entre os das classes abastadas, há sempre um porteiro de condomínio que ‘empresta’ seu banheiro para uma eventual urgência.

Em resumo: há falta de um compromisso mais empenhado das autoridades municipais no suporte à atividade profissional e a competição massiva dos supermercados é complexa, embora faça parte do jogo comercial. Mas o cenário, apesar dos pesares, traz uma alegria contagiante e um otimismo necessário nesses tempos sombrios. A alegria das feiras de rua vem musicada, nesse doc, com sambas e composições originais como Vem prá cá, Brasil, vem prá cá Rio de Janeiro.

Em suma: Todo Dia é Dia de Feira é uma singela crônica de hábitos do passado que ainda bem continuam vivos. Ele ajuda a diminuir a tensão e o estresse geral de uma época com fortes traços de desumanidade.

*Estreia nos cinemas dia 03 de abril.

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