À mesa, o passado, o presente e o futuro

Muitos devem lembrar-se do filme de Thomas Vinterberg, Festa de Família, que marcou o começo do histórico movimento do cinema dinamarquês, o Dogma, e abrigou filmes com grande sucesso internacional, nos anos 80. Agora, outra produção intitulada Família também repercute. Realizada em 2023, sobre tema semelhante – uma refeição especial durante a qual os podres familiares emergem e são discutidos, incendiando paixões, amores e ressentimentos -, é dirigida por Rodrigo García, filho de Gabriel Garcia Marquez, de 65 anos. Ela está em cartaz no streaming e revisita o mesmo assunto – a família -, que é sempre fascinante e complexo, e dessa vez atualizado de algum modo, e incluindo no roteiro a questão da solidão na velhice e lances do passado vividos no tempo presente da vida.
O filho de ‘Gabo’, que escreveu as clássicas histórias de Cem Anos de Solidão, é cineasta, diretor, fotógrafo e produtor. Criado no México, há 38 anos ele vive e trabalha nos Estados Unidos, na indústria cinematográfica.
Esse Família, cujo roteiro é de Rodrigo e da dramaturga Bárbara Colio, é iniciado com uma especial canção de amor musicando os preparativos para a confraternização familiar, para o bem e para o mal. A inesquecível canção interpretada por Roberto Carlos, Como Vai Você?, de Antônio Marcos e Mário Marcos, com versão para Y Tú Como Estás? inaugura o filme rodado no México e falado em idioma espanhol.
No seu elenco, dois atores populares e muito queridos do cinema em língua espanhola: Daniel Gimenez Cacho (fazendo Léo, o grande pai patriarca) e Maribel Verdu, interpretando sua namorada.
O cenário é a bela fazenda do viúvo Léo e do seu filho, Benjamin, um jovem com a Síndrome de Down. Um terreno recoberto de belas oliveiras centenárias, onde eles tocam para frente uma pequena indústria de azeite. Léo tem filhas adultas, uma casada com um americano, a outra está grávida e é solteira. O fazendeiro chama a todas e a todos da família, genro, namorada e netos e netas para avisar que recebeu excelente proposta financeira da RT Foods, multinacional interessada em adquirir a propriedade, derrubar a casa familiar e substituir o olival por grandes vinhedos.
Mas Léo afirma que só venderá o negócio, pressionado por dívidas originadas durante a recente pandemia, caso haja consenso na decisão das filhas. É quando os elementos da necessidade, ou do amor ao dinheiro, aos ganhos e aos lucros entram em cena como adereços da situação. Eles emergem com as decisões e hesitações das herdeiras.
Há filhas indecisas e outras ressentidas com histórias que perduram e foram vividas com os pais, no passado. Há uma filha com projetos de trabalho recém – concretizados que lhe proporcionam a garantia de um futuro financeiro tranquilo.
O ritmo do filme é ágil, os diálogos são cortantes e inteligentes, as sequências curtas e objetivas, e o desenho dos perfis dos personagens não é encharcado de sentimentalismos, apesar de ligeiros escorregões. Embora as queixas das filhas sejam inúmeras, e as manifestações discretas de amor pelo pai também, o filme acompanha a divergência de opiniões e o filme de Garcia vai avançando.
As filhas sentimentais e fantasiosas: por que não vender a área de cultivo das oliveiras e preservar o casarão como um espaço de lazer? As filhas pragmáticas reagem: e quem bancará as despesas de uma casa isolada e situada em plantação alheia? Ou: qual o tipo de turista vai continuar frequentando o local, depois de tamanha mudança?
Daniel Gimenez Cacho fazendo o enérgico pai patriarca, assiste, interfere e se irrita, se desculpa, concorda, discorda, e se mostra sempre sinceramente amoroso dessa família, das filhas, dos netos, do filho vulnerável e da necessidade, quem sabe, de refazer com a sua atual namorada, uma futura relação amorosa.
Ele também não está seguro em decidir sobre a venda da fazenda, das suas oliveiras e do seu passado. E é no personagem de Léo que, de algum modo, Família se assenta e difere da obra-prima escandinava, de Festa de Família, onde o que deveria ser uma celebração festiva acaba se mostrando um desastre na rudeza da realidade.
No filme de Rodrigo, assiste-se a uma despedida, e não a uma celebração, como no outro. São jovens vivendo com paixão as suas perplexidades, no tempo presente, mas com olhos ansiosos sempre assestados para o futuro. Léo, o velho pai, ao contrário, se alimenta das lembranças do seu passado para poder sobreviver no presente, para se manter vivo talvez com o seu negócio, com o seu trabalho e com suas oliveiras.
Família é um filme a assistir. Nada de especial, sendo, no entanto, paradigma. Apesar de encerrar com a objetividade que o permeia (são vários os finais desnecessários encontrados pelo diretor), ele versa sobre a velhice. Nada a ver com a febre atual de ‘identitarismos’. Família considera apenas, com alguma tristeza, os três tempos da existência. O passado, o presente e o futuro, esse cada vez mais curto para Léo.
*Em tempo: Rodrigo García é autor do livro Gabo & Mercedes – Uma Despedida no qual mescla o sofrimento das perdas a episódios divertidos do seu passado. É também um dos produtores-executivos da série da Netflix, Cem Anos de Solidão, rodada na Colômbia e em espanhol, como sempre desejou e exigiu Gabriel Garcia Marquez em vida. Família também estreou direto nessa plataforma.

Jornalista.