Cinema de resistência
Cinema de resistência é como deve ser nomeada a maioria das muitas produções cinematográficas atuais em cartaz que foram e continuam sendo realizadas no Brasil em tempos recentes. Como uma avalanche que se encontrava represada, dezenas de filmes de ficção e de documentários ocupam as telas dos cinemas e começam também a frequentar catálogos das plataformas online, essa uma novidade bem-vinda.
Assim como o cinema africano, a indústria nacional de filmes assume temas sociais e se firma como forte canal de luta política e resistência contra as sabotagens, atentados, golpes, falta de memória e a desinformação programada de redes sociais que procuram desestabilizar o sistema democrático. A indústria dos filmes produzidos aqui deve ser observada pelo governo federal como uma indústria brasileira estratégica e, portanto, prioridade na área da cultura e da educação.
Como comprovação, está aí a bilheteria surpreendente de Ainda Estamos Aqui, o filme de Walter Moreira Salles, levando a classe média burguesa e não particularmente cinéfila a deixar seus confortos em casa para sair e assisti-lo nas telonas do bairro. Mais adiante, esperamos que até a temporada de festas de fim de ano que se iniciam, com certeza o filme estará online.
Os filmes A Flor do Buriti e A Saudade Fez Morada Aqui Dentro, atualmente no streaming, são exemplos. Um, se reunindo ao grupo dos inúmeros filmes coproduzidos por parceiros indígenas ou aqueles com elenco e trama indígena, reafirmando a força e o reconhecimento, enfim assumidos, da diversidade da população. O outro, reiterando que o cinema intimista de qualidade não é prerrogativa do cinema europeu.
Exibido em dezenas de festivais ao redor do mundo, A Flor do Buriti (título original, Crowrã) é vencedor de catorze prêmios nesses eventos, como Melhor Elenco Coletivo da conceituada mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes. De autoria de Renée Nader Messora e João Salaviza, a obra, filmada durante 15 meses, é uma produção da dupla em parceria com a comunidade indígena Krahô, da aldeia de Pedra Branca, no norte do Tocantins. Ilda Patpro Krahô, Hyjnõ Krahô e Ihjãc Krahô são co-roteiristas e fazem parte do elenco.
A Flor do Buriti atravessa os últimos 80 anos dos Krahô, desde um massacre, em 1940, onde morreram dezenas de indivíduos. Perpetradas por dois fazendeiros da região, essas violências praticadas naquele momento continuam a ressoar na memória das novas gerações dos sobreviventes e descendentes das vítimas, os atores de Crowrã. Ótimos atores, diga-se merecidamente.
“O filme nasce do desejo de pensar a relação dos Krahô com a terra, pensar em como essa relação vai sendo elaborada pela comunidade através dos tempos”, diz a diretora Renée Messora. O cenário é o das quatro aldeias diversas dentro da terra indígena Kraholândia. Assim como no filme anterior de Renée e João Salaviza, o elogiado Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, a equipe era pequena e se divide entre indígenas e não indígenas.
Sua história percorre memórias e mitos locais, e os prêmios recebidos em inúmeros festivais apontam que o mundo está de olho nas questões dos povos originários no Brasil.
A Flor do Buriti tem atmosfera e comportamento dos personagens profundamente naturais e espontâneos por obra do elenco. E o entrelace de mitos e costumes com a dura realidade. O homem branco, por exemplo, cobiçando, como de hábito, riquezas naturais das terras de reservas indígenas, delas se apropriando e invadindo-as com violência mortal. Em 1940, são duas crianças do povo indígena Krahô que encontram na escuridão da floresta um boi perigosamente perto da sua aldeia. Prenúncio simbólico sombrio do violento massacre perpetrado pelos fazendeiros da região naquele ano. Mais adiante, em 1969, plena ditadura civil-militar, o filme relembra disposições do Ibama incitando muitos dos sobreviventes do episódio do assassinato em massa a integrarem uma unidade militar, a entrarem para o aparato de vigilância dos milicos, inclusive uniformizados.
A Saudade Fez Morada Aqui Dentro é o outro cartaz no streaming. Recebeu licenciamento para ser acessado simultaneamente em nada menos que plataformas de 190 países. “Estamos emocionados ao ver o nosso sertão, nosso sotaque e nossa inconfundível alegria de viver circulando por todo o mundo”, festeja o diretor baiano Haroldo Borges, do coletivo Plano 3 Filmes. A obra também foi pré-selecionada pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais como candidata a uma vaga na disputa do prêmio de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar de 2025, e nela os atores não são profissionais. Foram recrutados em escolas públicas de Salvador e fazem parte do elenco.
Sua trama é dramática e a história, tocante. Bruno, da cidadezinha de Rio do Poço, no sertão baiano, tem 15 anos, está perdendo a visão de forma irreversível e a cegueira total iminente conviverá com o adolescente para o resto da vida. Mas será esse trágico destino que o levará a lidar com as adversidades do melhor modo possível.
Longe de ser sentimentalista, A Saudade Fez Morada Aqui Dentro é um filme maduro e com roteiro enxuto, escrito pelo próprio diretor e comovedor com seu agudo sentimento. É um filme imperdível, tocante na delicadeza, conduzido pelo protagonista, o jovem Bruno (ator Bruno Jeferson, irretocável), que se vê apoiado na desgraça pela mãe (Wilma Macedo), pelo irmão mais moço (Ronnaldy Gomes), por um professor e pela colega dileta do colégio, todos convincentes e discretos na medida exata.
É genuína a descrição do universo de Bruno, no lugarejo próximo de Juazeiro, nos seus últimos dias com visão. Antes de o mundo escurecer para ele, acompanhamos o seu ambiente, as festinhas de interior, os forrós baianos e a maneira de falar “brasileiro”, com os ‘ó xente’; e os namoros, a descoberta da talvez homossexualidade da namorada, os xotes, a dança local “do piseiro”. Emoção e autenticidade.
Há três anos essa “modesta, mas talentosa produção brasileira”, como anota a Revista do Cinema, venceu o prêmio do Festival de Mar del Plata. Depois, foi aplaudida e premiada nos festivais de cinema do Rio de Janeiro, de São Paulo, em São Miguel do Gostoso, no Festival Aruanda, da Paraíba. “Além de ser um filme emocionante, cativante na sua história de superação, é um Brasil com nosso sotaque e nossa alegria de viver”, reitera Borges.
Nos dois casos, atenção para A Flor do Buriti e A Saudade Fez Morada Aqui Dentro. São parte da nossa cultura de raiz e do cinema nacional de qualidade e de resistência contra a violência, o ódio, o cinismo, a falta de civilidade, os preconceitos e a ignorância consentida.
Jornalista.