Conclave e a disputa do poder

Conclave e a disputa do poder

Poucas vezes (ou nunca) houve uma confluência de situações reais, no caso no campo da geopolítica e da arte do cinema definidas também como “coincidências”, como o ambiente atual cercando a estreia recente e o impressionante desempenho internacional da renda de bilheteria do filme Conclave, inspirado em um livro com título homônimo do ex-jornalista e escritor britânico Robert Harris, e Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Na Grã-Bretanha, ganhou o Bafta como Melhor Filme de 2025.

Conclave estreou nos Estados Unidos há seis meses. Nas nossas telas, na última semana de janeiro. Agora, faz história, supera índices de acessos dos espectadores em plataformas de streaming, e é o segundo mais visto nos quatro cantos do mundo após o falecimento do pontífice Franciscus.

Quando começou a ser mostrado nos cinemas, a situação de saúde do Papa Francisco era delicada, mas nada que sugerisse um final de vida tão rápido. Seu protagonismo como mensageiro da paz e da conciliação, da tolerância e dos acordos, e da verdadeira solidariedade nesse perigoso momento de transição da civilização humana, era notável. A sua palavra se fazia cada vez mais ouvida e presente.

O filme foi produzido no início de 2024, distante ainda do desenlace da trajetória de vida do Papa, e acabou ampliando uma rara dimensão da realidade com o anúncio de mais um conclave de cardeais que se inicia no Vaticano, no próximo dia 7 de maio. O seu diretor é o suíço Edward Berger, autor também do filme Nada de Novo no Front, e Peter Straughan é o roteirista, o mesmo de O espião que Sabia Demais, o clássico de John le Carré. Ambos são premiados e reconhecidamente hábeis em adaptar histórias literárias para a tela mesclando fatos, suspense e ficção.

O ator Ralph Fiennes é personagem central desse thriller papal no qual ele não faz o papel dele mesmo, de Ralph Fiennes, como costuma ocorrer habitualmente. É convincente na interpretação de um fictício cardeal Thomas Lawrence, decano do Colégio Cardinalício, responsável, mesmo a contragosto, pela organização e liderança do ritual sagrado. Lawrence representa a consciência e a testemunha dos eventuais desmandos e escândalos de bastidores da Cúria e explora manobras políticas que ameaçam a Igreja Católica.

Ao longo do filme são reveladas atitudes discutíveis dos candidatos ao pontificado. De um lado, cardeais progressistas que acreditam que “a diversidade é um presente de Deus à Igreja”. Outros, realistas, comentam que “os homens perigosos são aqueles que desejam o papado”.

O decano Lawrence navega entre certezas e opiniões. Ele acredita que “a certeza é inimiga mortal da tolerância”, como se encontra inscrito na homilia deixada pelo Pontífice que acaba de morrer. E que “a dúvida é a raiz da fé”, ele acredita, agindo como um funcionário da Cúria, mas também como trabalhador da Igreja e como patrão e chefe ao mesmo tempo. O desejo de Lawrence, no entanto, sempre foi o de trabalhar como pastor; não como administrador.

“Nunca encontraremos um Papa com nenhum tipo de impureza. Somos todos homens mortais”, é um dos recados de Conclave que leva à reflexão: “A Igreja é o que faremos a partir de agora. Não é a tradição, não é o passado”. O filme não é um libelo contra a igreja católica apostólica romana, como querem alguns. É uma ficção ancorada, mais do que nunca, na premente necessidade de reformas de princípios e da atualização de dogmas.

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Sua trama envolve o espectador, com o mistério e as intrigas ao gosto das plateias de massa, embora incomode a insistência do fundo musical com os acordes da Sinfonia do Destino, de Beethoven, pretendendo sublinhar o suspense e o desenrolar do drama.

“Assim como um volume de livro de bolso que é devorado, o thriller Conclave asperge um fascínio envolvente, é cheio de intrigas e o seu mistério é suculento”, escreveu o sofisticado crítico de cinema Peter Bradshaw, do jornal The Guardian.

Já Ralph Fiennes arrisca: “Há esse discurso muito interessante que Robert Harris dá ao meu personagem, sobre a dúvida e a importância da dúvida, que é o que choca muitos dos cardeais. Mas sem a dúvida não há mistério e sem mistério não há fé”.

Outro componente do grande sucesso e da atração do filme de Berger é o bravo elenco com atores memoráveis. Entre eles, Stanley Tucci, John Lithgow e a atriz Isabella Rosselini em pequenas intervenções decisivas, fazendo a Irmã Agnes, a responsável pela administração da Casa Santa Marta, a hospedaria dos cardeais quando estão no Vaticano. Onde o Papa Francisco morava.

No mais, a realidade da nossa época está lá, em Conclave. A pressão de grupos de cardeais da mesma região (os americanos do norte, ou os italianos; os europeus, os latino-americanos ou africanos e asiáticos) apoiando candidato com a mesma origem. O expurgo do conclave de um cardeal pouco antes do Papa morrer. Outro cardeal, desconhecido dos colegas, vem de Cabul, do fim do mundo, e foi recém-nomeado; e o sacerdócio feminino nunca autorizado, o matrimônio de padres, e aqueles que tiveram ou têm filhos naturais.

A trama acompanha o processo sigiloso de cardeais buscando convencer os demais dos motivos pelos quais devem ser eleitos. Cardeal Bellini, americano e progressista, busca mais inclusão de mulheres e da população LGBTI+ na Igreja. Mas não tem tanto interesse em se tornar papa. Cardeal Tedesco, italiano e conservador, quer retomar preceitos da Igreja Católica, como rezar missas em latim; Cardeal Tremblay, canadense e de posição moderada; Cardeal Adeyemi, nigeriano e conservador, almeja se tornar o primeiro papa africano da história.

A disputa se intensifica quando o cardeal mexicano Benítez (Carlos Diehz) surge no conclave. Ele foi secretamente nomeado pelo papa anterior, em um processo in pectore, para ocupar o posto na capital do Afeganistão.

Conclave é uma produção bem realizada, bem acabada, história com muita ficção e alguma realidade. Com um bom suspense e com lances de manobras políticas e de pressão religiosa. Mas nada de tão escandaloso e de tão espantoso como a realidade atual de dias atrás, com dois chefes de Estado sentados em cadeiras que bajuladores trouxeram para ambos se sentarem, no fim do velório na Basílica de São Pedro, para discutirem, durante 15 minutos, a divisão de despojos de guerra. Felizmente, Franciscus não estava mais presente e não viu o tenebroso espetáculo.

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