Estamos aqui

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O filme é um fenômeno de bilheteria. O livro de Marcelo Rubens Paiva, publicado em 2015 e no qual o filme foi baseado, ocupa o primeiro lugar entre os mais vendidos e populares na Amazon brasileira. Ambos, e em especial Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, foram esmiuçados pela crítica especializada, nas últimas semanas, e também por analistas políticos. O filme foi assistido e aplaudido no final de várias sessões nos cinemas, por mais de dois milhões de espectadores, depois de apenas quatro semanas em cartaz.

Em novembro, Ainda Estou Aqui recebeu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza de 2024, entregue aos seus autores, Murilo Hauser e Heitor Lorega, e nesta semana foi anunciado como um dos indicados ao Globo de Ouro 2025, na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira, escolhido entre 85 produções realizadas nos quatro cantos do mundo. Para Melhor Atriz, o Globo de Ouro indica como uma das candidatas Fernanda Torres. O prêmio, considerado mais importante que o Oscar, será anunciado no próximo dia 5 de janeiro.

Seguindo a sua trilha de êxitos, o filme brasileiro foi apontado pela respeitada Critics Choice Awards, associação de críticos norte-americanos da Califórnia, como candidato a Melhor Filme de Língua Estrangeira. Essa festa dos críticos, em Santa Monica, na Califórnia, será no dia 12.

O grande e trágico personagem do filme, na vida real e na vida cinematográfica, é protagonista do livro de Marcelo e do blockbuster de Salles. A advogada Eunice Paiva foi revivida na obra de seu filho quando da sua publicação, em 2018, e, agora, pela segunda vez, volta a ser lembrada por obra e arte de Walter Salles, de Fernanda Torres, do ator Selton Mello, de Fernanda Montenegro, de todo o elenco e equipe dos que trabalharam em Ainda Estou Aqui.

Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, engenheiro, jornalista e deputado cassado, preso e assassinado pela ditadura civil-militar de 1964, morreu aos 86 anos. Passou metade da sua vida procurando os restos do corpo do marido morto durante sessão de tortura, dentro do quartel do exército no bairro da Tijuca, Rua Barão de Mesquita, prédio que se encontra no mesmo lugar até hoje.

Eunice lutou na Justiça para conseguir o atestado de óbito comprovando o marido como morto pelo estado brasileiro durante tortura, e é uma das principais responsáveis pela promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas durante aquela ditadura. Mas, mesmo com o reconhecimento oficial da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, dos cinco envolvidos na morte de Rubens Paiva, nenhum deles foi julgado.

O título Ainda Estou Aqui, adotado como slogan (ou meme), neste final de ano, é uma referência à frase que Eunice Paiva costumava murmurar para lembrar a si mesma e à sua família que ela ainda estava presente apesar do Alzheimer que a cancelou da realidade nos seus últimos 14 anos de vida.

Morreu em 2018, sem ter certeza – e até hoje não havia informação oficial sobre o sinistro evento – se os restos do corpo do engenheiro Rubens Paiva foram cuidadosamente jogados no fundo do mar da costa do Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro, de modo a não serem localizados nunca mais. É o que se sabe à boca pequena e a testemunhos informais.

Ainda Estou Aqui, fenômeno de bilheteria e cantado em prosa e verso, é um excelente filme. Roteiro enxuto, ritmado, trabalho bem conduzido por atores excepcionais – mesmo as crianças e adolescentes são de espontaneidade admirável – e fotografia com todos os tons do bairro carioca do Leblon, nos anos 70, quando, em certa manhã, Paiva saiu de casa preso e escoltado por militares, dirigindo seu próprio carro para desaparecer nos quartéis da ditadura. A reprodução da atmosfera de então é irrepreensível e emocionante para quem morava e conheceu em detalhes aquele bairro, ainda aparentemente pacato, no ano de 1971.

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Um espectador comentou, na saída da sessão, que a principal força do filme, para ele, é a de não mostrar sangue, exceto em pontuais takes e, assim mesmo, ríspidos. Nem sessões de tortura explícitas ou a exposição ou transbordamento do sofrimento de Eunice valendo-se de lágrimas, choro e de extravasamentos emocionais. Exceto em um único momento de indignação e furor, como se vê quando salta fora de casa para esmurrar o vidro fechado dos meganhas que monitoravam sua casa dia e noite. Por sinal, uma das realidades da época, naquele tempo e naquele bairro.

Os “cachorros”, como eram chamados os espias da ditadura, estavam infiltrados em todas as partes, naquele Leblon, como dissemos antes, aparentemente pacato. Nos cafés, nos botequins, nas peladas de praia e de pé, encostados nos postes das esquinas, vigiando. De vez em quando qualquer morador podia se surpreender com um deles subindo pelas escadas dos pequenos prédios sem elevador, típicos do bairro, em busca de drogas que sabiam estar escondidas ou para chantagear moradores.

Fernanda Torres, filha da querida “Fernandona”, como carinhosamente se chamava naquele tempo sua mãe, desenvolve um intenso trabalho de dramaturgia introvertida no filme. Interpretação “para dentro”, sofrimento seco, ela/Eunice recria com perfeição a mãe que não podia sucumbir. Com cinco filhos para criar, com um enigma a esclarecer e que a seguiu por toda a vida, a saudade indescritível do marido e as lembranças dos dias felizes vividos juntos, foi em frente com a família, estudou as nossas leis, formou-se em Direito e mudou para São Paulo, distante do teatro da sua tragédia.

Um segundo espectador, na saída da sessão de cinema, comenta sobre a segunda parte de Ainda Estou Aqui. Mesmo muito emocionado, diz que o filme não chega a colocar em contexto a luta coletiva da qual Eunice foi uma parte. Apesar da perspectiva escolhida pelo roteiro, da ação e reação exclusivas da advogada diante da brutal perda do seu paraíso.

Sem dúvida: quem conheceu alguns meandros das relações sociais de membros da classe média tradicional carioca, naquela década, sente alguma falta do desenvolvimento de amigos dos Paiva e de advogados da família mencionados superficialmente.

Ainda Estou Aqui não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário”, escreveu com simplicidade e argúcia Julio Cesar Teles, mestrando em História da Universidade Federal de São Paulo. “Em tempos de ascensão de ideias absurdas que podem levar a regimes de exceção que rejeitam a discordância, reabrindo feridas não cicatrizadas – pois a justiça, nesse caso, foi impossibilitada ironicamente pela própria lei –, esse filme assume a função de memória e resistência.”

“A Lei da Anistia”, continua Teles, “que em seu momento restaurou a democracia, permitiu também que os militares responsáveis pela tortura e morte de muitos brasileiros seguissem impunes, em seus lares, com suas famílias.”

É peculiar a estreia de Ainda Estou Aqui no último dia 7 de novembro, quando há uma movimentação de retorno à memória e às lembranças sombrias das décadas de morticínio e perseguição, sufocadas até aqui à revelia da justiça ‘democrática’.

Ao estabelecer que devam constar nas certidões de óbito as mortes violentas causadas pelo estado durante a ditadura, e celebrando os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, nesta semana, as retificações em certidões de óbito de pessoas reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade como mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar. “Um acerto de contas legítimo com o passado”, discursou o presidente do STF.

O conteúdo do documento vem ampliar e complementar o sussurro de Eunice Paiva quando ela queria lembrar a si mesma e à família que estava presente apesar da doença: nós também ainda estamos aqui.

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