Mujica, minha lição ao vivo: e agora, presidente?

POR TARSO GENRO
“Acá somos todos primos”
Javier Miranda- Ex-Presidente da FA
Seregni, o “Russo” Rosenconf, Huidoboro, passeiam na minha memória ao receber a esperada e comovente morte de Pepe Mujica. Volto lá para os idos de 72, quando circulava nos anéis de sustentação do “Movimento de Liberación Nacional” – “Los Tupas” de Montevideo – que Huidoboro (El Ñato) discutia uma trégua na lutar militar, com oficiais do Batalhão Florida. “Ñato” tinha sido solto, em confiança, para discutir com a direção clandestina do MLN os termos da cessação das hostilidades armadas contra o regime, que salvariam a organização de uma liquidação completa. A trégua fracassou e os Tupamaros foram dizimados.
Lembro ainda um amigo Tupamaro da alta classe média montevideana me mostrando a diferença (em 1971) que “tenemos de ustedes”, e dizia: “Dan Mitrione, o gringo da CIA, foi ao Brasil ensinar a torturar e a matar, covardemente, brasileiros presos pelo regime, enquanto nós, aqui, “lo arrestamos” e o mandamos para o inferno, de onde ele jamais deveria ter saído”. Aqui tem Pátria, me ensinava o meu amigo, depois preso, torturado e assassinado pelos esbirros do regime. Lá se vão seis décadas! Lembro-me do General Seregni, em 2013, na Embaixada brasileira do Uruguai explicando-me a “especificidade” da transição num país onde todos “nos conocemos”, dizia o General.
“Acá todos somos vecinos”, nos disse o poeta e dramaturgo, o “Russo” (Maurício Rosencof) numa afável tarde de inverno no bairro de Malvin, em Montevideo, quando fazíamos – eu e Sandra Bitencourt – as conversas preparatórias para uma entrevista com este companheiro de Pepe Mujica. Ele foi um dos reféns dos anos de chumbo, enfurnados em prisões medievais e em covas insalubres, cujas vidas estavam sempre pendentes, como garantia de que o MLN já derrotado não realizaria qualquer ato desesperado de resistência ao regime cívico-militar da ditadura uruguaia.
A fala de Rosencof reproduzia também o sentido de algo que nos tinha dito Pepe Mujica, numa entrevista, alguns meses antes, em que ele falou não sem ironia: “fuimos rehenes, personas para olvidar, porque acá todos somos vecinos”. A “Lei de Caducidade (proibição) da Pretensão Punitiva do Estado” foi proposta e votada em 1985, para proteger os torturadores e assassinos do regime militar, dos eventuais processos que seriam propostos depois da democratização do país.
A Lei foi revogada somente em 2011, na primeira gestão do Presidente Mujica, depois de dois referendos que confirmavam sua validade, o de 1989 e o de 2009, cuja votação majoritariamente manteve a “caducidade pacificadora”. “Todos somos vecinos”. Numa conversa que tivemos em 2012 no Palácio do Governo em Montevideo, Mujica se debatia com um problema político grave, pois Eleutério Fernandez Huidoboro (1942 – 2016) seu Ministro da Defesa e ex-guerrilheiro – que no cárcere da ditadura negociou saídas com escalões militares moderados – estava descontente com o encaminhamento da revogação da referida Lei de Caducidade, já no mandato de Mujica.
Correto ou não, no seu diagnóstico de oportunidade, Huidobro entendia que os acordos que ele fizera no cárcere, teoricamente representando o MLN e toda a nação deveriam ter aceitação universal. O ex-Presidente Seregni já estava livre da prisão, onde penou entre 1973 e 1984 e Mujica, que esteve preso em condições infra-humanas entre 1972 e 1985, também foi salvo do cárcere, com a flexibilização do regime, num país já em profunda decomposição política e social.
“E agora Presidente, o que o Sr. vai fazer com isso”, perguntei não sem ansiedade e com medo de violar o silencio que um Chefe de Estado tem o direito de manter, nas situações críticas que, na sua vida, não foram poucas. Olhando a multidão nas ruas de Montevideo homenageando seu herói, seu Presidente, seu amigo, vizinho, chefe político e contador de histórias – lá dos subterrâneos da luta revolucionária latino-americana – lembrei-me imediatamente da sua resposta simples, direta, reta e sem cólera: “hay que tener cuidados porque yo no quiero que estos viejos mueran lejos de sus famílias”.
Confira a íntegra do documentário Tarso e Pepe – Lutando pelo Futuro na FATOFLIX.
*Artigo originalmente publicado em Matinal.
Foto: Cena do documentário Tarso e Pepe – Lutando pelo Futuro.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.