Na América Latina democracia entra pelas frestas
Complemento ao filme Utopia Tropical, esta resenha é mais sobre uma entrevista do seu diretor, João Amorim, do que propriamente do documentário citado que foi exibido nos cinemas no verão passado, rapidamente, e voltou a ser apresentado em uma única sessão no Canal Brasil, na última semana.
Incompreensível a ausência de Utopia Tropical, de 2023, duração de 77 minutos, em telas e telonas, premiado como Melhor Documentário no Caribbean Sea International Film Festival, na Venezuela, e no Portugal Indie Film. Trata-se de uma conversa importante entre dois amigos, o filósofo, sociólogo e ativista americano Noam Chomsky e o ex – chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim, atualmente assessor especial para assuntos internacionais do governo Lula.
O doc é o resultado de dois encontros de Chomsky e Amorim, um em 2018 e o segundo em 2022, na casa do primeiro, durante os quais ambos dissecam os golpes políticos sofridos pelos governos do Brasil nos últimos 50 anos, a ascensão e queda das esquerdas na América Latina, e relembram os conhecidos refrões – “América Latina, quintal dos Estados Unidos” e “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Cuba é mencionada como a “porta de entrada para o quintal” e abertura da primeira transição (golpe), nos anos 70.
Na entrevista ao blog Tutaméia, o diretor João Amorim concorda com os entrevistadores sobre a necessidade de mostrar Utopia Tropical em sessões nas universidades, nos institutos de educação, cursos técnicos, movimentos de comunidades e de favelas, e em classes de ensino fundamental.
A estrutura do documentário se firma com intervenções de pílulas de animações de César Coelho, fundador do Anima Mundi, músicas de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil e imagens de arquivo meticulosamente apuradas para reforçar a compreensão do pensamento dos interlocutores.
A linguagem usada por Chomsky e Amorim é didática, de fácil entendimento e sem os traços de economês; atinge aqueles que se encontram fora das bolhas intelectuais.
Alguns pontos de certa divergência entre os dois amigos conversando são observados pelo diretor do filme. Por um lado, o ponto de vista estadunidense de Chomsky ao comentar o planejamento detalhado por parte dos governos dos Estados Unidos nos golpes desfechados aqui, e o favorecimento do governo de Washington sempre avalista das corporações do país, dos democratas e dos republicanos. O diplomata brasileiro por sua vez ressalta o poder e a grande força nas intervenções das elites econômicas locais, no caso as brasileiras, e sua participação nos acontecimentos golpistas.
Outros pontos de interesse especial do momento atual e abordados nas conversas Chomsky-Amorim são a ascensão e a queda das esquerdas na América Latina e o conservadorismo da Suprema Corte dos Estados Unidos que coloca em cheque uma democracia de dois partidos. Assim como a formação e organização da religião evangélica ocupando a política no continente do norte, e aqui, no Brasil. Chomsky tem um olhar mais crítico e menos otimista que o de Amorim a respeito do movimento religioso que foi trazido dos EUA, se instalou e se firmou na América Latina.
Outros momentos da conversa versam sobre as manobras diversionistas das extremas direitas brasileiras fazendo “a boiada passar”, seus líderes entretendo o público espectador, os eleitores, com gafes, grosserias e aparições públicas calculadamente infames para empolgar as classes esquecidas, como se dirigem aos apoiadores, nas manifestações. O novo fascismo explora sentimentos das classes populares, dizem.
E também distraem o público com projetos apresentados por suas bancadas em Brasília, e com sessões caóticas e votações ruidosas de grandes temas de costumes: posse de armas, porte de drogas, aborto, interferências em currículos escolares, escolha da sexualidade, trabalho infantil.
“A História não se repete, mas às vezes rima”, Celso Amorim diz. A frase se consolidou como subtítulo do filme e a conclusão é dos dois companheiros: “Precisamos estar sempre atentos e apontando para a transformação da sociedade porque a direita está trabalhando no mundo todo, e cada vez que surge um governo mais progressista acontece um golpe”.
“A democracia entra pelas frestas” é outra imagem referente à política latino-americana. O Chile suscita reminiscências: “Lá, o brasileiro Paulo Guedes trabalhou na equipe econômica da ditadura, e Milton Friedman destruiu a economia do país”.
“Nosso golpe foi planejado ainda durante o governo Obama”, prossegue a conversa. “Com as festas elegantes da época oferecidas pelo governo de Washington e com o mantra celebrando um “mundo baseado em regras e na ordem internacional”.
Manipulação de juros, o FMI intervindo “para ajudar”, a “década gloriosa de 2003 a 2013” e o governo Dilma, com o feroz confronto e violento aumento de juros, e a mídia embarcando em conhecidas manobras são outros temas do encontro, assim como o nascimento dos BRICS, este ilustrado com a divertida animação da Rússia e da China batendo na porta pedindo para entrar na sala.
O conceito desenvolvido durante os anos 50, 60 e 70 é o da “segurança interna”, do inimigo dentro do próprio país, da época da repressão “brutal”.
Na última fase do encontro que estimamos seja bem mais divulgado, são comentados “o novo fascismo explorando sentimentos das classes populares” ao som de Cálice – cale-se – de Chico Buarque.
*A íntegra da entrevista de João Jobim está no youtube (clique aqui) e trechos da conversa entre Noam Chomsky e Celso Amorim.
Jornalista.