Justiça pelo SUS e seus trabalhadores pode ser feita com investigação de crimes impunes da pandemia

Justiça pelo SUS e seus trabalhadores pode ser feita com investigação de crimes impunes da pandemia

Não é de hoje que o sistema público de saúde vem sendo desmantelado e seus profissionais desvalorizados

POR THAÍS LAPA
Foto: Sandro Barros/PMO
Portal Desacato

O SUS, que no último dia 19 completou 35 anos de existência, é a maior conquista social do Brasil, segundo o atual ministro da saúde, Alexandre Padilha. Eu concordo. O que gostaria de salientar é que não existe o SUS sem investimento, sem infraestrutura, mas sobretudo sem seus trabalhadores e trabalhadoras. Que inclusive carregam o peso, por compromisso, de seguir realizando atendimentos, ações preventivas e todo o rol que contempla sua atuação mesmo sem condições estruturais suficientes. Porém, não bastasse a falta de estrutura, há um problema tão grave quanto este, o qual me espanta ser tão pouco discutido em nossa sociedade, que é a questão remuneratória dos profissionais de saúde, e aqui falo especificamente da enfermagem.

Este é um segmento de profissionais simultaneamente da saúde e do cuidado, majoritariamente feminino, que muito entrega e pouco recebe como recompensa, historicamente, em nosso país. Mas essa condição foi evidenciada e agravada sob o contexto da Pandemia da Covid 19, quando não somente atuaram sob baixa remuneração e condições infraestruturais insuficientes, mas foram extremamente vulnerabilizados no exercício do seu trabalho ao serem uma das profissões considerada como essencial, mas que não recebeu nenhum amparo em termos de protocolos preventivos à sua saúde desde o início da Covid 19. Não havia protocolos preventivos oficiais para si, nem para orientarem pacientes. Pelo contrário, houve, da parte do ex governo Bolsonaro, omissão de sobra, difusão de tratamentos ineficazes cientificamente como solução, estímulo a aglomerações e toda uma campanha deliberada de deslegitimação da necessidade de vacinação, testagem, uso de máscaras e isolamento social, sob o argumento de que sua prioridade era a economia.

Como consequência, muitos profissionais de saúde adoeceram, equipes de enfermagem, que estão entre as quais realizam os cuidados de forma mais direta e próxima dos pacientes, foram reduzidas – fosse por afastamento pela contaminação, pela desistência da profissão ou mesmo pelo agravamento do adoecimento pelo vírus, resultando em mortes. O Brasil foi um dos países que liderou índices de mortalidade de profissionais de enfermagem, no mundo. Em muitos lugares, como o estado onde resido e no qual direcionei o olhar de minhas pesquisas neste período, foi irrisório o volume de novas contratações de profissionais da enfermagem. Não houve abertura de concursos, mesmo sendo evidente essa necessidade diante das superlotações das instituições de saúde e diminuição de equipes. Pelo contrário, as mesmas foram sobrecarregadas em todos os seus limites e as contratações seguiram padrão que fere a lógica do serviço público, de apenas abrir vagas para profissionais temporários (“por contrato”), por três ou seis meses renováveis “ad eternum”. E sem aumentos salariais, diferente de outros profissionais de saúde, como médicos, que tiveram reajustes e bonificações no período.

Isso é absolutamente estarrecedor. Mais ainda se pensarmos que isso ocorreu no país do SUS, no país que é exemplo mundial na erradicação de doenças por conta da força do seu sistema público de saúde, no país que tem robusta experiência e capilaridade dos sistemas de vacinação, em que a saúde preventiva de forma geral tem o histórico de ser referência mundial. O SUS é sim nossa grande conquista social e um patrimônio a ser defendido, o que contempla defender a massa de trabalhadores que o sustenta diretamente, como as e os que atuaram na linha de frente como profissionais de enfermagem. Essa defesa não se faz com palmas e homenagens simbólicas, que se mesclam e possivelmente se anulam com a violência e hostilização que também frequentemente recebem, pagando o preço da revolta difusa que populações sentem quando a qualidade do atendimento piora ou demora e eles se apresentam como alvo fácil e material da descarga dessa revolta. Quem sustenta o SUS, sofre a violência fruto da insatisfação pelas suas insuficiências, merece ser defendido não somente pelos seus instrumentos associativos, como sindicatos e conselhos profissionais. Defender a valorização dos profissionais do SUS é dever de toda a população Brasileira. É no que profundamente acredito.

E jamais esquecerei da minha celebração quando as equipes do posto de saúde vieram à casa dos meus pais vaciná-los. Em ambos os casos, gritei “viva o SUS” quando terminavam a vacina, trocamos sorrisos que se percebiam pelos olhos, com as bocas e narizes cobertos de máscaras. Meu pai que à época mais de 80 anos, contudo, recebeu a vacina apenas após já ter contraído a covid 1 vez. Ele já tinha câncer e, acredito, contrair a covid sem vacina o debilitou bastante. Assim como em outros casos, foi uma pessoa que morreu no período da pandemia mas que não entrou para as estatísticas de mortes por covid. Que assim como outros, quem sabe, poderia ter tido mais tempo de vida se a vacina tivesse vindo antes, se não tivéssemos a absoluta negligência da compra de vacinas quando já existentes, disponíveis e ofertadas ao nosso país.

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Não é de hoje que o sistema público de saúde vem sendo desmantelado e seus profissionais desvalorizados. Mas o que a Covid 19 revelou, além da negligência, foi um conjunto avassalador de ações espúrias contra este sistema de saúde (e toda a população que ele poderia proteger), que foram sistematizadas na CPI da Covid, a qual irá completar 4 anos em outubro deste ano. Entre essas ações a CPI aponta ter havido “infração a medidas sanitárias preventivas” e “indícios de crimes contra a administração pública, como fraudes em licitações, superfaturamento, desvio de recursos públicos e contratos firmados com empresas de fachada para a prestações de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos”, conforme consta em matéria no site do STF onde a íntegra da decisão de abertura do inquérito também está disponível. Esta CPI será agora base de um inquérito cuja abertura foi autorizada por Flavio Dino do STF, a pedido da Polícia Federal, no último dia 18/9. Além do ex presidente Jair Bolsonaro e seus três filhos, o inquérito aprovado deve investigar cerca de outras 20 pessoas entre parlamentares e demais suspeitos de crimes no processo de condução de políticas durante a Pandemia de Covid 19. Dino fixou 60 dias para a apuração dos fatos.

Tudo isso sendo considerado de forma conjunta gera uma situação que represento simbolicamente como a Covid 19 tendo sido um barco no qual estávamos afundando, sendo os profissionais de enfermagem um dos principais grupos empenhados em nos resgatar e tirar água desta embarcação com os poucos recursos que dispunham, minimizando os danos coletivos e ao mesmo tempo sofrendo parte deles, enquanto havia de outra parte pessoas que deveriam ser as condutoras deste resgate que aparentemente estavam apenas procurando tirar algum benefício próprio da situação, jogando mais água para dentro da embarcação e desviando recursos que deveriam estar sendo empregados no combate à pandemia que nos afundava para fins alheios ao interesse coletivo. Se comprovados esses crimes, os acusados, parte deles também recentemente condenados pelo crime de golpe contra o Estado democrático de direito, como o próprio ex presidente Jair Bolsonaro, terão mais crimes pelos quais serem responsabilizados.

Que sigamos vigilantes, que sigamos reavivando a memória do que ocorreu em anos recentes e buscando justiça. Mas compreendendo que justiça não é somente condenar responsáveis por crimes do período da pandemia. Justiça é também reconhecer e valorizar a grandeza da profissão da enfermagem para o funcionamento do SUS e para este período particular em que esta profissão salvou vidas, acolheu, orientou, nadou contra a maré. Que venha a efetivação de seu Piso Salarial Nacional em carga horária de 30h semanais, proposto na PEC 19/2024, como historicamente vêm reivindicando. Que sejam possibilitados de exercer essa profissão com dignidade, sem perder a própria saúde ou a vida, sem ter de trabalhar em 2 ou mais empregos, como é tão frequente na área. Que possam ter valorização, tempo de vida além do trabalho e que as menores jornadas tragam benefícios ao conjunto da população, tanto a que atende como a que é atendida. Isso é fundamental – sim, isso ainda é pouco – também sim, mas é o mínimo.

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