Abordagem estruturalista versus análise conjuntural

O padrão de funcionamento da economia brasileira contemporânea pode ser descrito como um pacto social informal e não escrito. Nele se combinam relativa estabilidade inflacionária, baixa taxa de desemprego e crescimento moderado, ao custo de elevada concentração patrimonial e manutenção de desigualdades estruturais.
A historicamente baixa taxa de desocupação — em 5,6% — não expressa um movimento de transformação estrutural capaz de sustentar o pleno emprego por meio de ganhos de produtividade e expansão do investimento produtivo. Trata-se, antes, da resultante de duas forças complementares.
Por um lado, uma política fiscal distributiva é capaz de garantir renda mínima e capacidade de consumo às camadas populares, por meio de Previdência Social, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Minha Casa Minha Vida, entre outros). Por outro, a expansão de atividades de serviços urbanos de baixa produtividade (um produtor diretamente em contato com um consumidor) propicia a absorção de força de trabalho sem alterar substancialmente a estrutura produtiva.
Quanto à memória inflacionária, a estabilidade na faixa de 4% a 6% ao ano, observada nos últimos vinte anos com duas exceções (2015-16 e 2021-22), decorre menos da eficácia da política monetária e mais do caráter inercial e indexado da economia brasileira. Está referenciada por mecanismos de reajustes salariais, contratuais e administrados por reposição inflacionária.
A política monetária, ao ancorar-se em uma meta de inflação irrealista e arbitrariamente restritiva (3% ao ano), leva a recorrer a uma das maiores taxas de juros reais do mundo. Transforma-se em um dispositivo de transferência de renda ao retirar dinamismo do crescimento e canalizar recursos públicos e privados para os rentistas e detentores de ativos financeiros.
Esse arranjo institucional cristaliza uma forma específica de “equilíbrio macroeconômico” com planos mútuos dos diversos agentes econômicos relativamente satisfeitos. Pode ser caracterizada como estagdesigualdade: um padrão de crescimento cronicamente baixo, porém compatível com a manutenção da ordem social, porque assegura renda mínima para os mais pobres, previsibilidade para as classes médias e rentabilidade elevada para o capital financeiro.
Trata-se de uma forma de estabilidade distributiva assimétrica. Nela, todos os estratos sociais recebem alguma contrapartida, mas sem alteração substantiva das hierarquias sociais.
A funcionalidade desse modelo é reforçada pela inserção periférica do Brasil no sistema econômico-financeiro internacional. O superávit comercial estrutural é contrabalançado por déficits recorrentes em transações correntes, explicados principalmente pelas remessas de lucros e pagamentos de juros das empresas transnacionais. Desse modo, a dependência externa é naturalizada e incorporada ao funcionamento da economia globalizada.
O modelo brasileiro contemporâneo se aproxima, em aparência, dos regimes de baixo crescimento e inflação controlada das economias centrais maduras, mas o faz sob a lógica da financeirização periférica. Esse regime estabiliza expectativas no curto prazo, mas bloqueia trajetórias de desenvolvimento de longo prazo e reforça a reprodução histórica da desigualdade.
Essa abordagem estruturalista, seguindo a tradição da corrente de pensamento econômico latino-americano, advindo da CEPAL, renovada pela “Escola de Campinas”, isto é, o IE-UNICAMP formador de quadros competentes de economistas para todo o país, é bastante diferente do publicado nos editoriais e na coluna da autodenominada “grande” (sic) imprensa brasileira.
Sem pluralismo em suas folhas, ela pratica uma análise conjuntural conservadora viesada em defesa do neoliberalismo. Existe uma convergência significativa entre o diagnóstico da Folha de S.Paulo, em seus editoriais, e a visão de O Mercado, expressa nas entrevistas publicadas pelo Valor/Globo, especialmente em relação à causa do sobreaquecimento econômico e à necessidade de juros altos.
No entanto, há uma diferença crucial no grau de ceticismo do mercado financeiro quanto à eficácia da política monetária e nos riscos futuros, em contraste com o posicionamento editorial da Folha. Farei uma comparação detalhada de seus pontos de vista.
Quanto à convergência no diagnóstico, refere-se ao diagnóstico de sobreaquecimento, devido ao gasto público social. Imprensa e porta-vozes de O Mercado “denunciam” a economia brasileira estar operando acima de sua capacidade produtiva por causa do gasto público excessivo.
O diagnóstico econômico do editorial da Folha de S.Paulo é: o governo Lula “esquentou a economia com gastos insustentáveis”, levando-a a ser forçada “ir além de sua capacidade”. Isso gerou inflação. O Mercado, por meio do Valor/Globo, aponta igualmente a economia estar “sobreaquecida” e operar “acima de sua capacidade”.
Daí ambos justificam os juros altos (Selic fixada arbitrariamente), dos quais se beneficiam muito, em razão de o Banco Central do Brasil (“infelizmente”… snif) ser “obrigado a pisar no freio” e a manter a Selic “em níveis escorchantes” (15% aa), porque o governo Lula 3 exagera nos gastos sociais. O Banco Central promete mantê-la alta por um longo período para “esfriar a economia” – e enriquecer ainda mais os já muito bem aquinhoados.
Para tanto, a “grande imprensa e O Mercado cobram o alcance da meta irrealista de inflação. A inflação está acima de 5% em 12 meses, ante uma meta de 3%. Afirmam sem pudor: “as projeções de mercado (4,8% e 4,3% para 2025 e 2026) estão muito acima da meta de 3%”. O desequilíbrio provocado pela política fiscal dificulta a queda da inflação para a meta de 3%. O Mercado não prevê o cumprimento da meta de 3% por muitos anos porque as menores expectativas estão em 3,7%. Snif, snif… tem de manter os juros enriquecedores!
A principal diferença reside na avaliação da efetividade das taxas de juros e no papel do risco fiscal futuro. Há um ceticismo de O Mercado expresso através de seu porta-voz (Valor/Globo): “ainda não acredita em o Banco Central ser capaz de desacelerar a economia o suficiente”. O questionamento da Autoridade Monetária por O Mercado sobre o sobreaquecimento é fundamental para determinar quando os juros cairão. Ele pauta o COPOM (Comitê de Política Monetária)…
O ceticismo de O Mercado se baseia em dois principais motivos. Primeiro, quanto ao risco fiscal futuro, um grupo acredita em “o governo reagirá com medidas de estímulo fiscal e creditício”, caso a economia comece a desacelerar. O Mercado duvida do Banco Central conseguir cumprir a meta “se houver um novo impulso fiscal capaz de atrapalhar seu trabalho”.
Segundo, diz respeito ao risco de corte prematuro. Outra parte dos analistas teme o Banco Central “cortar os juros antes da hora”. As projeções medianas de O Mercado ainda apontam para a economia levemente sobreaquecida, no fim de 2026 (0,1%), embora a Autoridade Monetária espere uma capacidade ociosa de apenas 0,8%. Todos iludem com suas projeções “certas” para o futuro incerto, porque é resultante de interações de decisões descentralizadas, descoordenadas e desconhecidas porque sequer foram ainda tomadas.
A convicção dos editoriais da Folha expressa a fantasia neoliberal de a política de juros altos já estar funcionando e ser necessária. Ela observa “sinais claros de desaceleração” na atividade econômica, evidenciados pela queda de 32% na geração de empregos formais em julho e pela alta da inadimplência. A desaceleração do PIB e o aumento da desocupação é vista como “necessária”.
Antes de tudo, prega a austeridade fiscal como solução. O editorial foca na falha do governo Lula em ser “mais austera” para reduzir o déficit público. A queda dos juros poderia ser muito maior com a ajuda da política fiscal.
Para a Folha, se a economia está esfriando, a responsabilidade é só do Banco Central, porque “ele pisou no freio” e o governo petista ainda não adotou a solução pregada de austeridade fiscal. O Mercado, por sua vez, teme o risco fiscal impedir o esfriamento ser suficiente.
Ambos os lados, conservadores da “grande” imprensa e neoliberais de O Mercado, dão grande peso ao risco político-eleitoral, mas com foco ligeiramente diferente.
O editorial da Folha de S.Paulo, já em campanha eleitoral antipetista, vê risco imediato (2025/2026) de o governo Lula 3 embarcar em um “vale-tudo eleitoral, com aumento descontrolado das despesas públicas”, para ganhar prestígio político. O Mercado expressa a dúvida sobre o ajuste fiscal necessário em 2027 levar o Banco Central a ser “mais conservador” em 2026, atrasando o corte de juros… para gáudio geral da “nação Faria Lima”.
A imprensa antipetista luta contra o risco de continuidade. Diz: “o governo Lula inverteu o ciclo político-eleitoral de gastos” e aposta no modelo de gasto contínuo, paradoxalmente, levar a uma desaceleração na metade final do mandato. Acha: “O Mercado está subestimando os riscos de uma continuidade do governo Lula, um Lula 4”. Será pior diante “o precificado O Mercado desde hoje”. Já vimos este filme antes…
Em suma, embora a Folha de S.Paulo e O Mercado compartilhem a visão de a política econômica atual estar gerando desequilíbrios (sobreaquecimento e juros altos), o órgão de imprensa critica o excesso de gasto social atual e a falta de austeridade fiscal, enquanto o ente sobrenatural manifesta grande ceticismo sobre a capacidade de o Banco Central ter sucesso, devido ao risco iminente de o governo intervir com novo estímulo fiscal e creditício em reação à desaceleração econômica. Não apreciam a alegria do povo… exceto do “povo da Faria Lima”.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].
