Atualidade do adeus ao proletariado

Atualidade do adeus ao proletariado

Adeus ao Proletariado é uma obra do filósofo e sociólogo austríaco-francês André Gorz, publicada originalmente em 1980. Gorz, um pensador influenciado pelo marxismo, ecologismo e existencialismo, desenvolveu uma crítica profunda às transformações no mundo do trabalho e à relevância da classe proletária como agente revolucionário.

A publicação do livro ocorreu em um período de grandes transformações econômicas e sociais, caracterizado pela transição de uma economia industrial para uma economia pós-industrial ou de serviços. Nos anos 1970 e 1980, as economias ocidentais enfrentavam crises econômicas, o declínio da indústria pesada, a globalização, a terceirização e o surgimento de novas tecnologias.

Esse cenário levou a uma mudança na estrutura da classe trabalhadora e ao questionamento da centralidade do proletariado industrial como o sujeito revolucionário por excelência. O intelectual da “geração 68” contrapunha-se ao defendido pela teoria marxista tradicional.

Para Gorz, o proletariado industrial, antes considerado o principal agente de transformação social e revolução, estava perdendo sua centralidade na estrutura social e econômica. Com a ascensão do setor de serviços, a automação e a fragmentação do trabalho, o proletariado tradicional estava se tornando uma classe menos relevante e menos homogênea.

Ele identifica uma crescente heterogeneidade dentro da classe trabalhadora, com o surgimento de novos tipos de trabalhadores, como profissionais de serviços, trabalhadores do conhecimento, e trabalhadores precários. Isso fragmenta a unidade de classe e dificulta a mobilização coletiva.

Gorz critica o marxismo tradicional por ter um foco excessivo na classe proletária como o único agente de transformação social, ignorando a complexidade e a diversificação das formas de trabalho e das classes sociais emergentes. Para ele, a teoria marxista precisava ser revisada para refletir as mudanças no capitalismo e na estrutura social.

Discute a alienação no trabalho. A automação e os demais avanços tecnológicos não só reduzem o número de empregos industriais, mas também alteram a natureza do trabalho, tornando-o mais fragmentado e menos satisfatório.

Então, Gorz propõe um novo tipo de luta emancipatória focada na autonomia e na autogestão, em vez de uma simples luta de classes pelo poder. A emancipação deveria passar por uma transformação da vida cotidiana, com ênfase na redução do tempo de trabalho (jornada semanal) e na busca por atividades autônomas e criativas, fora do mercado de trabalho.

Embora não totalmente desenvolvida em “Adeus ao Proletariado”, Gorz começa a explorar a ideia de uma Renda Básica Universal (RBU) como forma de garantir uma existência digna para todos, independentemente do trabalho tradicional. Isso se relaciona com sua visão de um futuro no qual o trabalho assalariado deixaria de ser o centro da vida social.

A previsão de Gorz sobre o declínio da centralidade do proletariado como classe revolucionária parece ter se concretizado em muitos aspectos. A classe trabalhadora, especialmente no contexto ocidental, tornou-se mais fragmentada e diversificada, com a automação, a terceirização e o crescimento dos setores de serviços e tecnologia propiciando novas categorias de trabalhadores não auto identificados como proletários.

Gorz antecipou, de certa forma, a transição para um mundo onde o trabalho está cada vez mais precarizado e desregulado, com menos segurança e estabilidade. O fenômeno da “uberização”, por exemplo, é um reflexo das mudanças surgidas quando trabalhadores autônomos substituem os trabalhadores assalariados.

O fenômeno refere-se à crescente transformação das relações de trabalho tradicionais em um modelo de prestação de serviços sob demanda, caracterizado pela intermediação de plataformas digitais. O termo deriva do nome da empresa Uber.

Revolucionou o setor de transportes ao conectar motoristas e passageiros através de um aplicativo, mas a uberização se estende a diversas outras áreas, como entregas, serviços domésticos, freelancing, e até mesmo áreas profissionais como advocacia e contabilidade.

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Plataformas digitais, como aplicativos e websites, fazem a intermediação entre o trabalhador e o consumidor final. Essas plataformas permitem os trabalhadores oferecerem seus serviços de maneira flexível e sob demanda.

Trabalhadores escolhem quando, onde e quanto querem trabalhar. Isto é apresentado como a vantagem de autonomia e flexibilidade. Eles aceitam ou recusam trabalhos conforme desejarem.

Na uberização, os trabalhadores são geralmente classificados como prestadores de serviços autônomos ou freelancers, e não como empregados formais com vínculo empregatício. Significa eles não terem acesso a direitos trabalhistas tradicionais, como salário fixo, férias remuneradas, previdência social, seguro-desemprego, ou licença médica.

A remuneração é feita por tarefa ou serviço concluído, em vez de ser por hora trabalhada ou salário mensal. Isso leva a uma remuneração instável e incerta, dependendo da demanda por serviços.

A plataforma conecta trabalhadores por conta própria a consumidores, criando uma competição intensa entre os prestadores de serviços. Provoca a redução de preços e, consequentemente, dos rendimentos.

A uberização permite pessoas acessarem um mercado mais amplo de consumidores sem a necessidade de investir em infraestrutura ou marketing. A plataforma oferece a visibilidade e os clientes.

Embora ofereça flexibilidade, a uberização resulta em condições de trabalho precárias. A falta de estabilidade financeira e a ausência de benefícios sociais são críticas comuns a esse modelo.

A uberização vai contra a definição tradicional de emprego e trabalho, deslocando a relação direta entre empregador e empregado para uma relação mediada por uma plataforma digital. A responsabilidade pelos riscos associados ao trabalho, como acidentes, saúde e segurança, é transferida do empregador para o trabalhador. Isso leva a uma maior vulnerabilidade.

Com a falta de vínculos empregatícios formais, direitos adquiridos ao longo de décadas de luta sindical passam ser ignorados ou perdidos. É o caso de proteção contra demissões arbitrárias, negociações coletivas e benefícios sociais.

A concentração de poder econômico nas mãos das plataformas digitais exacerba a desigualdade. As empresas operadoras dessas plataformas lucram bastante.

A uberização também tem impactos sociais amplos, como a desestruturação de carreiras tradicionais, a redução da coesão social no local de trabalho, e a criação de uma classe crescente de “trabalhadores precários” sem proteções sociais.

Esse fenômeno de mudança significativa na forma como o trabalho é organizado e remunerado na economia moderna mostra a atualidade de “Adeus ao Proletariado”. Embora ofereça vantagens em termos de flexibilidade e acesso a mercados, o fenômeno foge os modelos tradicionais de regulamentação do trabalho e exige novas abordagens legais para garantir aos trabalhadores proteção e segurança adequadas em ambiente cada vez mais digital e fragmentado.

A ideia de uma Renda Básica Universal, com pioneirismo da defesa de Gorz, ganhou força nas décadas seguintes, especialmente em debates sobre o futuro do trabalho diante da automação e da inteligência artificial. Embora ainda não tenha sido amplamente implementada, a discussão sobre essa política reflete as preocupações de Gorz com a necessidade de desvincular a sobrevivência econômica do emprego assalariado tradicional.

Enfim, “Adeus ao Proletariado” tornou-se uma obra clássica, lida por gerações posteriores. Ao criticar e questionar a centralidade do proletariado industrial e do marxismo tradicional, trouxe à tona discussões tornadas proféticas.

Na imagem, o filósofo e sociólogo austríaco-francês André Gorz / Reprodução

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