Comoditização profunda

Comoditização profunda

Segundo Branko Milanovic, no livro “Capitalismo sem Rivais” (2020), o sucesso maior do capitalismo foi ter transformado a natureza humana de tal modo a ponto de todos terem se tornado excelentes calculadores de dor e prazer, de ganhos e perdas. Caso a produção fabril capitalista desaparecesse hoje, ainda continuaríamos vendendo serviços uns aos outros por dinheiro: afinal, nos tornamos empresas quando passamos a ser, no Brasil, “pejotizados”.

Se tivéssemos hoje uma economia assim, ela seria totalmente capitalista, porque estaríamos vendendo todos esses bens e serviços uns aos outros: um vizinho não ficaria de olho em seus filhos de graça, ninguém compartilharia comida com você sem pagamento, você faria seu cônjuge pagar por sexo, e assim por diante. Se esse é o mundo distópico para o qual estamos avançando, o campo das operações capitalistas se tornará ilimitado, pois incluirá cada um de nós e as mundanas atividades cotidianas.

Para Milanovic, “estamos participando da comoditização com boa vontade, até mesmo com entusiasmo, porque ao longo da socialização no capitalismo as pessoas se tornaram máquinas de calcular capitalistas. Cada um de nós se tornou um pequeno centro de produção capitalista, atribuindo preços implícitos ao nosso tempo, a nossas emoções e nossas relações familiares”.

A comoditização “profunda” é um processo do qual os indivíduos participam livremente e costumam achar libertador. Por exemplo,  a possibilidade de dirigir seu próprio carro com fins lucrativos é um elemento encaixado perfeitamente no sistema de valores sustentáculo do capitalismo hipermercantilizado, cuja ideia de microempreendimento em si os indivíduos internalizaram.

Segundo Milanovic, “esse sistema coloca a aquisição de dinheiro em um pedestal. A capacidade de negociar o próprio espaço e tempo pessoal para obter lucro é vista como uma forma de empoderamento e como um passo em direção ao objetivo último de adquirir riqueza. Portanto, representa o triunfo do capitalismo”.

A comoditização da esfera privada é o apogeu do capitalismo hipermercantilizado. Ela não pressagia uma crise do capitalismo.

Uma crise ocorreria somente se essa comoditização da esfera privada fosse vista como uma invasão em áreas nas quais os indivíduos quisessem proteger da comercialização e como uma pressão para se envolver em atividades das quais não quisessem participar. Mas a maioria das pessoas tem a percepção oposta e a considera um passo em direção ao enriquecimento e à liberdade pessoal.

Milanovic tira as seguintes conclusões. Em primeiro lugar, quando as sociedades enriquecem, a esfera da comoditização se expande. Em segundo lugar, embora uma maior comoditização tenha melhorado nossa vida em muitos casos, ela também enfraquece os laços pessoais e nos torna mais insensíveis, porque qualquer pequeno problema incômodo é imaginado ser resolvido com dinheiro. Isso nos deixou menos preocupados até com nossos familiares.

Quando as interações são transitórias e separadas, o espaço onde se exerce um comportamento cooperativo “simpático” encolhe. Agentes em negócios pontuais não apresentam uma simpatia gratuita. Essa linha-de-chegada seria uma utopia da riqueza e uma distopia das relações pessoais.

O capitalismo, segundo Milanovic, foi bem-sucedido em transformar os seres humanos em máquinas de calcular dotadas de necessidades ilimitadas. O capitalismo estimula um uso melhor do tempo e a capacidade de expressar tudo em termos de um poder de compra. Essa postura capitalista avançou para dentro de nossa vida privada.

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O domínio do capitalismo como a única maneira de organizar a produção e a distribuição está sem nenhum rival à vista. No ocidente, o capitalismo é meritocrático liberal; na Ásia, o capitalismo é político autoritário.

“O capitalismo ganhou essa posição graças à sua capacidade, por meio do apelo ao egoísmo e ao desejo de possuir propriedades, de organizar as pessoas para conseguirem, de maneira descentralizada, criar riqueza e aumentar muito o padrão de vida de um ser humano médio”.

Esse sucesso econômico tornou mais aguda a discrepância entre a capacidade de viver uma vida melhor e mais longa e a falta de um aumento proporcional da moral, ou mesmo da felicidade. As pessoas estão cada vez mais movidas apenas pelo interesse próprio.

O espírito capitalista penetrou profundamente na vida individual das pessoas. Estender o capitalismo à família e à vida íntima era, antes, antitético às concepções seculares sobre sacrifício, hospitalidade, amizade, laços familiares etc.

Não é fácil aceitar abertamente todas essas normas terem sido substituídas pelo interesse próprio. Esse mal-estar cria redes sociais onde reina a hipocrisia, a impessoalidade e a solidão. O sucesso material do capitalismo, segundo Branko Milanovic, está associado a um reinado de meias verdades em nossa vida privada.

A solidão é a dor social de não se sentir conectado. O isolamento social é a insuficiência no número de conexões interpessoais. Rede social na internet é autoengano.

Segundo reportagem de Cláudia Penteado (Valor-Eu&FdS, 31/01/25), “a solidão está ligada à ansiedade e à depressão e pode aumentar o risco de doenças cardiovasculares em 30%. Estima-se uma em cada quatro pessoas idosas experimente hoje o isolamento social, e entre 5% e 15% dos adolescentes vivenciem a solidão”.

Desconexão social, em um mundo de pessoas voltadas exclusivamente para seus celulares (des)inteligentes, leva a resultados educacionais inferiores. Jovens com sentimento a solidão desde o Ensino Médio têm maior probabilidade de abandonar a Universidade.

Ela também afeta o desempenho econômico. Sentir-se desconectado e sem apoio no trabalho leva a menor satisfação e pior produção profissional.

No livro “O século da solidão”, a economista e autora britânica Noreena Hertz reflete sobre as muitas razões para a epidemia de solidão global. Desde os anos 80, quando se iniciou a Era Neoliberal, as sociedades se tornaram progressivamente mais individualistas e competitivas.

A insegurança econômica e o desinvestimento global na “infraestrutura comunitária” por meio de cortes de gastos públicos em bibliotecas, centros comunitários, clubes de jovens e parques públicos, por exemplo, também ampliaram a solidão. Há também o envelhecimento com a demência.

Pior, a polarização ideológica e religiosa aguda, observada na sociedade, não apenas em linhas econômicas, mas também culturais, sociais e políticas aliena grupos de pessoas. Deixa-as ignoradas e invisíveis.

A tecnologia é um fator decisivo e contribui de diferentes formas para uma “vida sem contato”. São exemplos disso o aumento de caixas de autoatendimento, atendimento eletrônico para resolver problemas, a migração de inúmeras atividades sociais para as redes impessoais.

A hiperconectividade, o uso excessivo de telas e de redes sociais e o vício em uma vida quase 100% digital são causadores de ansiedade e outras dores psíquicas por causa da solidão. Parem o mundo! Eu quero descer!

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