Desdolarização: Impactos para o Brasil e para as economias do Sul Global

Este artigo investiga o surgimento e a consolidação de redes financeiras alternativas ao sistema dominado pelo dólar e pelo SWIFT, destacando seus impactos para o Brasil e para as economias do Sul Global. A análise considera os aspectos institucionais, tecnológicos e geopolíticos dessas novas infraestruturas monetárias, com ênfase em iniciativas como o CIPS, o mBridge e as Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs).
Tais transformações representam uma oportunidade histórica para o reposicionamento das economias periféricas no sistema financeiro internacional.Afinal, a arquitetura financeira internacional pós-Segunda Guerra Mundial consolidou o dólar como moeda dominante, com o SWIFT como principal infraestrutura de comunicação entre bancos.
Essa dominação imperial impõe custos e riscos geopolíticos aos países do Sul Global. O surgimento de redes como o CIPS (China), SPFS (Rússia), e projetos como o mBridge, indica uma tentativa de reconfiguração do sistema monetário internacional, impulsionado por tecnologias como as CBDCs.
As novas infraestruturas financeirasinternacionais envolvem oCIPS (China), umsistema chinês de liquidação internacional em RMB, operacional desde 2015, com mais de 1.300 instituições conectadas. OmBridge é um projeto multilateral liderado pela China para pagamentos transfronteiriços com CBDCs. Encontra-se em estágio piloto avançado.
Há também oSPFS (Rússia)e oINSTEX (UE-Irã). Foram iniciativas criadas para contornar sanções internacionais, com resultados variados.
As CBDCs são Moedas Digitais de Bancos Centrais, em diferentes estágios de desenvolvimento. A China lidera com o e-CNY.
Os maiores impactos para o Brasilse deverá àredução da dependência do dólar.Haverá o potencial uso do RMB em comércio bilateral com a China.
Possibilitará um reposicionamento institucionalcom a integração ao mBridge via o Drex.O DREX é a versão digital do real brasileiro, emitida e regulada pelo Banco Central. As letras D e R fazem referência ao Real Digital, o E vem de eletrônico e o X traz a ideia de conexão, associada à tecnologia utilizada.
Há também desafios regulatórios e tecnológicos a serem superados.Talvez ocorra a necessidade de reforma cambial, para uma “flutuação suja” com a moeda nacional mais depreciada, para aumentar a competividade comercial global, sem trazer “inflação importada”.Cabem a adaptação institucional e a superação de resistências geopolíticas.
Os impactos para o Sul Globaldevem ser muito importantes. O “Sul Global” é uma categoria político-econômica e simbólica, e não meramente geográfica. Ela expressa a condição relativa de exclusão e subordinação sistêmica no capitalismo globalizado, abarcando países em luta por soberania material, capazes de reivindicarem democratização da governança internacionale se articularem para construir uma ordem multipolar e mais inclusiva.
A inclusão monetária soberanaaumentará pelo acesso direto a sistemas de liquidação, sem intermediação de bancos ocidentais. Evidentemente, o Sul Global deverá estar atento para orisco de nova dependênciacom a potencial substituição da hegemonia do dólar pela hegemonia tecnológica da China.
Abrirá oportunidades de cooperação Sul-Sulcom a criação de blocos monetários digitais regionais.As novas redes financeiras representam uma oportunidade de ruptura com a hierarquia monetária global estabelecida.
Para o Brasil e os países do Sul Global, trata-se de uma chance de promover maior soberania financeira, mas também um desafio de articulação institucional e tecnológica. O futuro dessa transição dependerá da capacidade de construção de alianças multilaterais e de governança compartilhada das novas infraestruturas monetárias.
A arrogância norte americana a respeito da hegemonia do dólar como padrão monetário mundial poderá ser superada, devido aos EUA se achar autossuficiente e fazer uma guerra comercial contra o resto do mundo. O RMB digital poderá ser um meio de pagamento no comércio global.
Essa questão toca no nó estratégico da atual transição do sistema monetário internacional, combinando hegemonia, política externa e inovações monetárias. Cabe examiná-la por partes, com base na teoria crítica da hegemonia e na realidade empírica recente.
A arrogância hegemônica do dólar tem limites e contradições. Não é apenas um fato econômico, mas o pilar simbólico e institucional da ordem internacional criada pelos EUA após 1945.
Ela se baseia em confiança nos ativos denominados em dólar (especialmente títulos do Tesouro norte-americano, os Treasuries), no domínio do sistema de pagamentos (SWIFT) e das agências de compensação; no poder de sanção (arma financeira via exclusão de países e entidades); e na capacidade de atrair capitais globais em tempos de crise (“fuga para a qualidade”).
Contudo, essa hegemonia tem se tornado cada vez mais coercitiva e menos consensual. A “arrogância” aparece em sanções extraterritoriais (Irã, Venezuela, Rússia), na instrumentalização do sistema bancário global para fins geopolíticos e na crença na autossuficiência financeira dos EUA, viabilizada pela emissão ilimitada do dólar sem inflação aparente interna porque o resto do mundo financia o déficit no balanço de transações correntes deles, devido às importações baratas.
Essa postura tem gerado reação sistêmica, especialmente entre países emergentes e potências rivais. Elas buscam alternativas para evitar os custos e riscos de operar sob essa hegemonia.
O RMB Digital passou a ser visto como a grande alternativa emergente. A China busca gradualmente internacionalizar o Renminbi (RMB).
A versão digital (e-CNY) integra essa estratégia com os seguintes diferenciais: infraestrutura tecnológica própria (CIPS), compatível com redes como o mBridge, não dependente do SWIFT; controle total do ciclo monetário, com identificação direta dos fluxos comerciais e financeiros, permitindo operar mesmo com sanções; capacidade de uso bilateral em contratos comerciais internacionais, especialmente com países do Sul Global e da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI); potencial de criar um sistema de pagamentos paralelo, baseado em acordos interestatais e com interoperabilidade de CBDCs.
Contudo, o RMB digital ainda não é uma moeda globalmente conversível como o dólar. Seu uso está crescendo por decisão política bilateral, por exemplo, no comércio China-Brasil; incentivos tecnológicos e de financiamento; desdolarização gradual de reservas cambiais (Rússia, Turquia, países do Golfo).
A atual guerra comercial contra os parceiros dos EUA atua como catalisador dessa transição. A postura unilateralista e protecionista dos EUA, marcada por guerras tarifárias e bloqueios tecnológicos, gera efeitos sistêmicos adversos à hegemonia do dólar: incentiva países a buscar autonomia estratégica, inclusive monetária; rompe as cadeias globais de valor e encarece o uso do dólar em algumas rotas; leva à desconfiança de longo prazo sobre a neutralidade do sistema financeiro internacional baseado nos EUA.
Nesse contexto, o RMB digital aparece como um instrumento estratégico da China para consolidar uma esfera financeira própria — ainda limitada, mas em expansão. Seu sucesso dependerá de confiança internacional no RMB como reserva de valor, estabilidade do sistema financeiro chinês, capacidade da China de liderar coalizões monetárias regionais, não apenas bilaterais.
A hegemonia do dólar está sendo erodida não apenas por rivais, mas pelas próprias contradições do poder norte-americano, entre elas a ilusão de autossuficiência e a transformação do sistema monetário internacional em instrumento geopolítico coercitivo. O RMB digital, com apoio de novas redes (como mBridge e CIPS), não substituirá o dólar no curto prazo, mas já é um meio de pagamento viável e crescente no comércio global, sobretudo no eixo Sul-Sul.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].