É chegada a hora da crítica severa à “práxis” do capitalismo

É chegada a hora da crítica severa à “práxis” do capitalismo

Por Ivanisa Teitelroit Martins *

“…Os fortes arrombam o muro,

Os ágeis o escalam,

Os pacientes o arranham.

Para outros, um muro é um muro…

Eles seguem sem pensar no mal…

…nem no bem.

O bem e o mal

Existem no entanto para eles,

É um muro como outro

Que lhes dá sua sombra.

Aos murados tudo é muro

Mesmo uma porta aberta.”

(duas últimas estrofes do poema “Obstáculos” de Antoine Tudal)

É chegada a hora da crítica severa à “práxis” do capitalismo, exercido ao máximo em sua versão neoliberal, sustentado pela pós-modernidade como suporte metafísico. Esta crise social coloca em questão o sistema sócio-político. Afeta os cidadãos gravemente, a vida das empresas, o destino dos empresários, dos trabalhadores, dos trabalhadores precários e pobres. Tudo no mesmo redemoinho porque nas sociedades modernas há uma “comunidade de destino” que nos une indissoluvelmente uns aos outros. Ao se romper o vínculo, inclusive emocional, ao se difundir o medo ao outro, o individualismo radical, a não solidariedade social, própria do neoliberalismo a que somos submetidos, nos tornamos mais frágeis nos dias de hoje. Devemos nos unir para enfrentarmos um inimigo comum do qual ninguém pode escapar sozinho.

O neoliberalismo ataca todas as subjetividades e interpretações ideológicas da realidade já que não crê na sociedade mas nos indivíduos competindo entre si de modo desigual. Determina a ampla liberalização da economia, o livre comércio e uma redução drástica do gasto público e da intervenção do Estado em favor do setor privado.

O paradoxo é que o próprio liberalismo não é forte o suficiente para salvar seus próprios valores. Deixado por conta própria, o liberalismo se corroerá lentamente – a única coisa que pode salvar seu núcleo de valores, que o próprio liberalismo tornou decadentes, é uma esquerda renovada. Ou, para usar os famosos termos da 1968, para que sua herança mais importante sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda “fraterna” da esquerda radical.

A realidade somente pode fazer sentido em relação ao real que está sempre excedendo a realidade. Se a realidade não pode exaurir o real, a realidade política também não pode exaurir o político. A política não é reduzível à realidade política. A política não pode se restringir a um certo tipo de instituição ou a uma esfera ou nível específico da sociedade. Deve ser concebida como uma dimensão inerente a cada sociedade humana que determina nossa verdadeira condição ontológica. Ao se negar a política isso não a faz desaparecer. Isso somente nos leva à perplexidade diante de suas manifestações e à impotência em saber lidar com estas.

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Este é o momento de um fracasso estrutural do simbólico em relação ao real, o momento dos efeitos do encontro com o real que se revela como o momento do político par excellence na leitura de Lacan. É um momento em que as instituições sócio-políticas são percebidas, através de uma concepção fantasmática, imaginária, nada além de uma miragem. É nesse momento traumático que se inicia, uma vez mais, mais uma vez, um processo de simbolização.

A articulação de um novo discurso político somente faz sentido quando é articulado contra um fundo em que há deslocamento da ordem sócio-política ou do espaço ideológico anterior.

É a falta criada pelo próprio deslocamento que causa o desejo de uma nova articulação discursiva. É esta falta criada pelo deslocamento do social que forma o núcleo do político como “em um encontro com o real lacaniano”. Cada acontecimento traumático e a resposta institucional e global do neoliberalismo, provoca uma articulação antagônica através de diferentes discursos que tentam simbolizar sua natureza traumática. Nesse sentido o político se apresenta na raiz da política e o deslocamento na raiz da articulação de uma nova ordem sócio-política, um encontro com o momento real da política na raiz da nova simbolização da realidade política, que esperamos esteja possivelmente em curso.

*Texto publicado na Carta Maior em 22/03/2020

Ivanisa Teitelroit Martins é psicanalista, mestre em planejamento e políticas sociais pela London School of Economics. Publicou artigos em revistas especializada sobre a “lógica do inconsciente no nó borromeu” e “sintoma como índice da estrutura significante”

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