Economia de mercado de capitais ou de endividamento público e bancário

A economia capitalista contemporânea articula dois regimes de alocação de capitais: o mercado de capitais, estruturado pela valorização patrimonial das ações e o sistema de endividamento público e bancário, ancorado na renda fixa, derivada da taxa básica de juros. Embora interdependentes, eles operam sob racionalidades econômicas distintas.
Na Economia de Mercado de Capitais, a alocação de capital ocorre por meio da avaliação financeira de empresas listadas em bolsas, cujos preços de ações refletem expectativas de rentabilidade futura e política de dividendos.
O princípio regulador é a “Maximização do Valor para o Acionista” (Shareholder Value Maximization). Ele se consolidou nos Estados Unidos e na Europa anglo-saxônica a partir dos anos 1980, com a desregulamentação financeira e a difusão global do modelo de governança corporativa centrado no mercado.
Nesse regime, o preço da ação resume as informações do mercado sobre o desempenho e as expectativas da firma. O custo de capital é determinado pelas condições de liquidez e percepção de risco sistêmico.
A renda variável — dividendos depende dos desempenhos das empresas abertas e ganhos de capital depende das oscilações de mercado de ações –, sendo mais volátil e sensível a ciclos de confiança, juros e inovação tecnológica. A alocação de capital global ocorre por arbitragem entre retornos esperados ajustados ao risco, ou seja, o capital flui para onde o valor acionário promete maior crescimento em termos reais.
A financeirização global expandiu esse circuito, permitindo a realocação instantânea de capital entre países e setores via fundos de investimento, ETFs e derivativos. A “regulação” do sistema, portanto, é mercadológica, porque a variação das cotações atua como um mecanismo descentralizado de disciplina financeira sobre empresas e gestores.
Na Economia de Endividamento Público e Bancário (EEPB), o segundo circuito, mais típico de economias híbridas, europeias ou periféricas, o capital é alocado não pela valorização de ações, mas sim pela capacidade de remuneração da dívida — pública ou privada — indexada à taxa básica de juros, definida pela autoridade monetária.
Nesse caso, o Banco Central exerce poder normativo e político ao fixar uma taxa de referência (como a Selic no Brasil ou a Fed Funds Rate nos EUA). Essa taxa serve de piso para toda a estrutura de remuneração financeira, balizando tanto os títulos públicos quanto o crédito privado.
A alavancagem financeira decorre da diferença entre o custo de captação (juros pagos sobre o passivo) e o retorno do ativo (lucro ou juros recebidos). A renda predominante é fixa ou pós-fixada, com correção pela inflação ou indexadores de mercado, oferecendo menor risco nominal, mas também menor potencial de valorização.
Nesse regime, a alocação de capital é administrada institucionalmente, e o Estado é o principal tomador e garantidor da dívida, transformando-se no devedor sistêmico capaz de lastrear a riqueza financeira privada ao oferecer risco soberano: garantia de pagamentos em moeda nacional. As políticas monetárias restritivas (juros elevados) tornam o investimento em títulos públicos mais atrativo diante o produtivo, consolidando uma estrutura rentista e de concentração de riqueza.
Comparativo Estrutural
| Característica | Mercado de Capitais | Endividamento Público e Bancário |
| Forma dominante de rendimento | Dividendos e ganhos de capital (renda variável) | Juros nominais e reais (renda fixa) |
| Regulação | Valor de mercado e expectativas acionárias | Política monetária e taxa básica de juros |
| Agente central | Empresa aberta transnacional | Estado e sistema bancário |
| Mecanismo de alocação | Cotação das ações | Fixação de juros e crédito bancário |
| Natureza do risco | Volatilidade de mercado | Risco de crédito e de política monetária |
| Lógica de valorização | “Maximizar valor para o acionista” | “Preservar poder aquisitivo e rendimento real” |
| Modalidade de capital | Renda variável e capital próprio | Renda fixa e capital de terceiros |
| Exemplo histórico | Era Reagan-Thatcher, globalização financeira, ETFs | Brasil pós-1964 (correção monetária, dívida pública) |
Ambos os regimes convivem de forma estruturalmente interdependente. O Estado endividado fornece o ativo seguro (títulos públicos) capaz de ancorar o portfólio bancário e de Pessoas Físicas. O mercado acionário global depende das condições monetárias, isto é, das taxas de juros e liquidez, definidas pelos Bancos Centrais.
No entanto, há uma contradição sistêmica:
- juros altos valorizam a renda fixa e desvalorizam as ações;
- juros baixos estimulam o risco e a valorização de ativos acionários, mas podem corroer a renda dos rentistas.
Assim, a política monetária atua como mediadora entre o regime do endividamento e o regime acionário, influenciando a distribuição funcional da renda e a estrutura de poder entre rentistas, investidores e Estado.
Essa distinção entre Economia de Mercado de Capitais e Economia de Endividamento não é apenas técnica, mas político-estrutural. No primeiro caso, a disciplina do capital é exercida pelo mercado. No segundo, é instituída pelo Estado.
Ambos, porém, convergem para a financeirização da riqueza. Há a conversão de parte do fluxo de rendas em ativos financeiros, seja ele acionário ou de dívida.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].
