Fé Cega, Faca Amolada

Fé Cega, Faca Amolada

A comparação entre o fervor dos marxistas em torno da doutrina do socialismo e a fé religiosa é feita ao se observar algumas características comuns manifestadas em ambos, apesar de suas diferenças fundamentais em termos de conteúdo e propósito. Essas semelhanças se dão, sobretudo, na forma como os seguidores se relacionam com a doutrina, sua visão de mundo e os comportamentos associados.

Tanto as religiões quanto a doutrina marxista prometem uma redenção final. Nas religiões, especialmente nas tradições abraâmicas, existe a promessa de um paraíso ou de uma salvação em uma vida após a morte ou no fim dos tempos. No marxismo, essa salvação é secular e se manifesta na ideia de uma sociedade comunista sem classes, onde a opressão e as desigualdades são superadas.

Assim, muitos marxistas veem a luta pelo socialismo e pelo comunismo como um caminho inevitável e necessário para alcançar uma sociedade perfeita. Comportam-se da mesma forma como os crentes religiosos esperam um futuro divino e redentor.

As religiões possuem textos sagrados, como a Bíblia ou o Alcorão. Eles são estudados e interpretados de diversas maneiras de acordo com cada seita.

O marxismo também tem seus “textos sagrados” na forma das obras de Karl Marx, Friedrich Engels e outros pensadores posteriores. Esses escritos são lidos, estudados e debatidos intensamente, com diferentes correntes surgindo a partir de interpretações divergentes.

Isso ocorre de forma semelhante às diversas seitas e denominações religiosas surgidas de diferentes leituras de escrituras. Daí a expressão “sectário” relativo a seita. Em sentido figurado, designa quem não transige, ou seja, é intolerante.

Assim como as religiões têm rituais e símbolos capazes de unirem seus adeptos, como missas, procissões e ícones sagrados, os movimentos marxistas criaram seus próprios rituais e símbolos. Marchas, comícios, celebrações como o Dia Internacional dos Trabalhadores (1º de Maio), bandeiras vermelhas, o símbolo da foice e do martelo, e cânticos revolucionários, como “A Internacional”, servem para consolidar a identidade do grupo e reforçar o sentimento de pertencimento.

No marxismo, especialmente em suas manifestações históricas, figuras como Marx, Lenin, Mao, e outros líderes revolucionários foram (e ainda são) reverenciados quase como profetas carismáticos ou figuras messiânicas. Suas imagens e ideias são usadas para inspirar e guiar os adeptos, de maneira semelhante ao culto de santos, profetas e líderes religiosos em várias tradições.

A disposição para sacrificar-se pela causa também é uma característica comum de modo a aproximar o fervor marxista da fé religiosa. Muitos militantes e revolucionários marxistas dedicaram suas vidas à causa, enfrentando prisões, torturas e até a morte. Tinham a convicção de sua luta ser justa e necessária para a emancipação da humanidade. Esse tipo de sacrifício voluntário pela “salvação” coletiva se assemelha à dos mártires religiosos, sofrendo por sua fé na esperança de um bem maior.

Assim como em muitas religiões há uma forte crença na verdade absoluta das suas doutrinas, os seguidores mais ortodoxos do marxismo também demonstram um alto nível de dogmatismo. Para esses adeptos, a análise marxista da história e a inevitabilidade do triunfo do socialismo são verdades indiscutíveis.

Essa certeza leva à rejeição de quaisquer críticas e de outras perspectivas, gerando uma espécie de “ortodoxia” defendida com imenso fervor. Preferem ler e reler O Capital em vez de estudar relatórios de novas pesquisas com fatos e dados sobre o capitalismo contemporâneo.

A construção de uma comunidade solidária, unida por uma crença comum e uma missão, é outra característica capaz de unir os movimentos marxistas às religiões. Os adeptos do marxismo compartilham um ideal de fraternidade internacional e de solidariedade entre os trabalhadores. Ele se assemelha ao senso de irmandade e à busca pelo bem comum encontrados em muitas tradições religiosas.

Embora o marxismo seja uma doutrina secular e materialista, a maneira como muitos de seus seguidores se dedicam à causa, interpretam os textos, seguem líderes, e se engajam em ações de mobilização e sacrifício, de fato, lembra o fervor de uma fé religiosa. A comparação não implica em o marxismo ser considerado uma religião, mas sim certos comportamentos e práticas humanas relacionadas a crenças profundas e movimentos de transformação social tenderem a compartilhar características transcendentes à linha divisória entre o secular e o sagrado.

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A evolução da doutrina do progresso desde o Iluminismo até o socialismo marxista é, desse modo, vista como um processo de secularização de ideias previamente enraizadas em uma visão teológica da história. No Iluminismo, houve uma ruptura com a visão religiosa tradicional e uma ênfase no potencial da razão humana e do conhecimento científico para emancipar a humanidade e conduzi-la a um futuro de progresso e prosperidade.

Essa nova abordagem, secular e racionalista, via a história como um processo linear de melhoria contínua, marcado pela superação gradual da ignorância, da superstição e da opressão. A partir dessa visão iluminista, a ideia de progresso ganhou um caráter quase messiânico, mas sem conotação religiosa explícita.

Ela se transformou em uma espécie de crença na inevitabilidade do avanço humano em direção a uma condição melhor, fundamentada na razão e na ciência. Essa crença se manifestou em várias formas, inclusive no pensamento político e econômico do século XIX.

No caso da doutrina marxista, a visão de progresso foi incorporada de forma distintiva. Karl Marx e Friedrich Engels adaptaram a ideia iluminista de progresso para o materialismo histórico, no qual a história seria movida pela luta de classes e determinaria o desenvolvimento da sociedade através de fases inevitáveis.

Para os marxistas, o socialismo seria uma etapa lógica e necessária na superação do capitalismo, levando finalmente ao comunismo. Este representaria um estado de igualdade e liberdade plena – uma espécie de paraíso terrestre.

Embora Marx e Engels rejeitassem a religião como “ópio do povo”, sua narrativa sobre a história humana e seu desfecho final de emancipação total guardavam semelhanças estruturais com as narrativas religiosas. O socialismo e/ou o comunismo foi, portanto, apresentado como a resolução inevitável das contradições do capitalismo, prometendo um futuro utópico onde as injustiças sociais seriam abolidas.

Essa esperança em um futuro idealizado tem uma forte semelhança com as promessas de salvação e paraíso das religiões tradicionais. Isto apesar de sua base filosófica ser materialista e não teológica.

Dessa forma, a doutrina marxista compartilha com as crenças religiosas uma visão teleológica da história, relacionando-a com sua causa final, em uma narrativa de redenção e um estado final de perfeição. No entanto, ela se diferencia pelo fundamento no materialismo dialético e histórico. Ele pretende ser considerado científico, em vez de místico ou sobrenatural.

Assim, o socialismo foi abraçado e defendido por seus adeptos com um fervor comparável ao de uma fé religiosa, mesmo com seu conteúdo sendo profundamente secular e crítico em relação às religiões tradicionais.

A expressão “fé cega, faca amolada” significa a fé ser cega por envolver um salto no escuro ou duvidoso. Já a faca precisa ser amolada, pois, assim, ela passa a agir de forma racional, previsível e cortante.

A fé cega cria lacunas na mente sem dúvidas e incredulidade. Nega o raciocínio e o livre arbítrio, características naturais do ser humano. O problema não é ter fé, mas sim tentar impô-la aos outros – ou querer salvar quem não quer ser salvo.

A letra da música “Fé Cega, Faca Amolada”, escrita por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, utiliza metáforas para transmitir a ideia de a fé e a paixão serem como uma faca amolada, afiadas e prontas para enfrentar os desafios do cotidiano. Creio em deus padre… para jamais enfrentar uma faca amolada! Adapto o dito por um paisano ao observar o funcionamento da guilhotina na Revolução Francesa: –  Louvo todos os deuses (inclusive os marxistas) e… deixo o mundo ser mundo.

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