Imperador Donald troca dólar por criptomoeda privada

O paradoxo final da financeirização neoliberal é o mesmo sistema antes proclamador da soberania dos mercados e da disciplina fiscal terminar sustentando-se por meio da criação ilimitada de moeda nacional, para a transformar em especulação com criptomoeda. Na Economia de Mercado de Capitais dos Estados Unidos, passa a haver intervenção estatal permanente para garantir a valorização do capital fictício.
O capital fictício, na obra de Karl Marx, refere-se a ativos financeiros como ações e títulos sem possuírem lastro material direto na produção, mas representativos de um direito a rendimentos futuros como lucros e juros. Ele é “fictício” porque não é capital real, considerado o dinheiro investido em meios de produção e trabalho vivo.
Representa sim uma forma de capitalizar expectativas futuras e, por isso, está sujeito à especulação e volatilidade do mercado. O valor desses ativos é precificado com base no fluxo de renda futuro esperado – e não no valor intrínseco da produção.
O capital fictício representa direitos legais sobre a produção futura, não os bens de produção em si. Seu valor de mercado flutua de acordo com as expectativas de lucros futuros (dividendos e juros), podendo se dissociar completamente do valor da produção real.
A alavancagem financeira da rentabilidade patrimonial surge do desenvolvimento do crédito e do sistema bancário, permitindo somar capital de terceiros ao capital próprio e financiar novas atividades. Ações, títulos da dívida pública e outros instrumentos financeiros são exemplos de capital fictício de investidores ou credores ao concederem seu capital próprio para outros obterem lucro.
Não se trata de uma “financeirização parasitária”, mas sim dinâmica, porque funciona como um motor para a acumulação de capital, acelerando o processo produtivo e de investimento. Contudo, a expansão desproporcional do capital fictício, em relação ao capital produtivo, cria contradições insustentáveis por causa do descolamento diante os fundamentos microeconômicos, setoriais e macroeconômicos, podendo levar a crises financeiras caso as expectativas não se concretizem.
É possível destrinchar esse paradoxo final da financeirização neoliberal em suas camadas estruturais. O primeiro passo se deu com a desregulamentação do Estado interventor.
O neoliberalismo nasceu, nos anos 80 nos EUA e na Inglaterra, junto com a globalização, ao impor aos países sofredores da crise da dívida externa e dependentes do FMI o mantra do Estado ser mínimo e “sair do caminho” dos mercados. Mas, ao consolidar a dominância financeira, o sistema capitalista passou a depender da ação contínua do Banco Central e do Tesouro Nacional para sustentar os preços dos ativos e a solvência dos intermediários.
O laissez-faire virou “laissez-sauver”: deixar fazer, mas salvar sempre. O risco privado é socializado; os ganhos, privatizados.
A moeda nacional se torna a base do capital fictício. A financeirização parasitária, diferentemente da dinâmica, desloca o núcleo da acumulação da produção para o patrimônio. Entretanto, o valor desses ativos patrimoniais é sustentado pelo lastro da dívida pública e pela liquidez criada ex nihilo pelo Estado.
A riqueza privada torna-se, paradoxalmente, dependente da expansão do passivo público. A retórica anti-Estado esconde o fato de o Estado ser o verdadeiro fiador da rentabilidade financeira ao oferecer risco soberano, isto é, a baixa probabilidade de um governo não pagar suas dívidas ou não honrar outras obrigações financeiras.
Também é conhecido como risco-país, quando reflete a capacidade e a disposição de um país de cumprir seus compromissos financeiros externos, sendo um fator crucial para investidores estrangeiros ao decidirem investir em uma nação. Fatores como instabilidade política, desastres naturais e crises econômicas afetam esse risco de inadimplência perante o endividamento externo.
Na realidade contemporânea, mercados “livres” são sustentados por dinheiro barato. A “liberdade” de mercado é, na prática, o efeito de uma política monetária ultraexpansionista — juros baixos e QE —, após a GCF 2008, ao transferir continuamente liquidez para os detentores de ativos.
Quanto mais se prega austeridade fiscal, mais se impõe afrouxamento monetário: títulos de dívida pública são resgatados em moeda. Essa combinação sustenta a inflação de ativos e a concentração de riqueza nos especuladores.
A financeirização parasitária destrói sua própria base ou fundamentos. Ao converter tudo em ativo financeiro com valor em disparada, o sistema capitalista contemporâneo inverte a hierarquia da produção: o trabalho e o investimento produtivo tornam-se secundários. Com isso, o dinamismo real se esgota e o capital depende crescentemente de bolhas de valorização.
O capitalismo neoliberal vive de antecipar ganhos futuros. Mas é possível eles jamais se materializarem e serem uma pura “metástase de expectativas”.
Pior é o visto agora como a fusão final entre o poder político e o patrimônio privado. O caso Trump-cripto, um nítido conflito de interesses ao transformar a moeda nacional – o dólar – em moeda privada – a criptomoeda –, é o estágio extremo: o governante do Império americano usa o aparelho de Estado para valorização direta de seus próprios ativos (detidos por sua família). O mercado especulativo, por sua vez, aposta em seu poder político para sustentar a bolha das criptomoedas.
O papel da moeda americana nas reservas internacionais dos países está diminuindo – devagar, mas sempre. Desde 2015, sua participação caiu 23%. Em termos absolutos, o dólar segue ainda líder, porque 46% das reservas globais estão na moeda americana. Mas há 10 anos eram 60%. É o menor nível desde 1995.
A maior perda é para o ouro. A participação do metal nas reservas dos Bancos Centrais era perto de 10% e agora dobrou para 20%, tanto pelo fato de estarem comprando mais ouro, como pela valorização do metal.
Os Estados Unidos devem para todo mundo possuidor títulos públicos americanos. Pagam a dívida ao fazer mais dívida, ou melhor, não pagam, fazem rolagem.
Os EUA não têm superávit primário desde 2007. Já existem gestores de investimentos trocando títulos públicos americanos por títulos privados, ou seja, dívidas de empresas, senão por criptomoedas.
A soberania pública e a acumulação privada tornam-se indistintas — o “mercado livre” é o Estado em si mesmo financeirizado para benefício particular. Em termos de Economia Política, o neoliberalismo, emergente com a promessa de submeter o Estado à disciplina dos mercados, termina subsistindo apenas porque o Estado infla os mercados de ativos com liquidez ilimitada.
De forma lapidar, a financeirização neoliberal morrerá engasgada pelo sucesso desmesurado. O capital fictício precisa de um Estado imperial cada vez mais ativo para preservar a ilusão de os mercados serem autônomos.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].
