Juros: herança maldita de Bolsonaro
A tecnocracia financista precisa ser pressionada a mudar o seu comportamento e a se adaptar à nova realidade de um País que deseja romper com o desastre provocado pelo governo passado e abrir o caminho para o desenvolvimento econômico e social
A gestão independente do Banco Central (BC) acabou de anunciar os resultados do governo na área fiscal. É de costume a instituição divulgar no começo de cada mês uma nota oficial tratando da matéria. Porém, em função das dificuldades de coleta e tratamento das informações estatísticas, os boletins geralmente analisam os dados das contas públicas com o atraso de um mês.
As tabelas fiscais estão atualizadas com os números de janeiro de 2023. São, portanto, os primeiros resultados envolvendo o início do terceiro mandato do Presidente Lula. Apenas para os primeiros 30 dias do governo, os gastos com juros atingiram o total de R$ 52 bilhões. A título de comparação, vale lembrar o burburinho todo apresentado pelos representantes do financismo quando o novo Chefe do Executivo bateu o martelo por um reajuste real do salário mínimo de R$ 1.302 para R$ 1.320. Afinal, segundo esse pessoal, a medida provocaria um impacto “absurdo” de R$ 7 bi a mais de despesas orçamentárias ao longo do ano todo. E dá-lhe críticas dos “especialistas” por uma suposta gastança populista e chantageando com um apelo à responsabilidade fiscal.
A partir desta informação de janeiro, podemos calcular o total gasto com juros ao longo dos últimos 12 meses. A cifra alcança um valor de R$ 621 bi, ou seja, algo mais elevado do que o total do ano de 2022, quando foram destinados R$ 586 bi a essa rubrica de gastos relativos aos compromissos da dívida pública. Tal diferença provém do valor maior de janeiro deste ano comparado aos R$ 17 bi do primeiro mês do ano passado. Ora, como o montante pago de juros depende basicamente do total do estoque da dívida púbica e do nível da taxa de juros, a diferença do patamar da SELIC entre os dois momentos ajuda compreender o fenômeno. Em janeiro de 2022, a taxa de referencial estava ainda em 9,25% e agora registra 13,75%, tal como o COPOM vem mantendo desde agosto. Já o valor do estoque total da dívida bruta do governo, ainda segundo o mesmo boletim do BC, subiu de R$ 7 trilhões para R$ 7,2 tri durante o mesmo período de 12 meses.
Juros: recorde atrás de recorde.
Como se pode perceber, a bomba está mesmo armada para o início do governo. Caso nada seja feito em relação à independência do órgão responsável pela condução da política monetária, a tendência é de que sejam ainda mais expressivos os gastos efetuados com juros na comparação com o ano passado. Como todo o raciocínio e as regras para a implementação da austeridade fiscal foram montados com base na armadilha do superávit primário, as despesas financeiras não entram no cálculo do esforço a ser realizado junto às contas públicas. Assim, torna-se urgentíssimo o processo de aprovação das novas medidas fiscais que deverão substituir o método criminoso e draconiano daquilo que foi eufemisticamente intitulado de “Novo Regime Fiscal” em 2016, tal como previsto na Emenda Constitucional nº 95.
A esse respeito, vale lembrar que a aprovação da PEC da Transição em dezembro passado se transformou na EC 126 e incluiu a necessidade de “lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”. Após a sanção do referido texto legal a ser encaminhado pelo governo até agosto deste ano, o teto de gastos estaria então definitivamente enterrado, bem como a chamada “regra de ouro” prevista no art. 167 da Constituição.
No entanto, não bastam essas medidas – ainda que as mesmas sejam muito necessárias. Enquanto o COPOM não resolver inverter a lógica que tem orientado a sua ação ao longo dos últimos anos, estarão mantidas as imensas dificuldades para recuperar o caminho do crescimento e do desenvolvimento econômicos. A opção por manter a SELIC em patamar tão elevado constitui obstáculo à implementação do programa de governo de Lula, que foi eleito pela maioria da população brasileira. Esta é uma das mais graves dimensões da herança maldita deixada por Bolsonaro e Paulo Guedes.
A sabotagem de Campos Neto do BC.
O Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e sua equipe estão blindados pela Lei Complementar n° 179, aprovada pelo Congresso Nacional em 2021. Atendendo ao poderoso ‘lobby’ da banca privada e com o apoio explícito do superministro da Economia, o parlamento votou a independência do BC, assegurando um mandato fixo aos seus diretores, independentemente dos governos que viriam na sucessão. Assim, Lula começa seu terceiro mandato com um colegiado dirigindo o órgão todo ele composto pelos 9 membros nomeados por Bolsonaro, após indicação de Paulo Guedes. É verdade que ele poderá nomear dois diretores a serem substituídos agora em fevereiro e mais outros dois a partir de janeiro próximo, mas suas indicações ainda ficarão em minoria no colegiado.
A orientação ortodoxa e monetarista do dirigente do BC está em contradição com a intenção desenvolvimentista de Lula. Até o presente momento, o tecnocrata indicado pelo governo bolsonarista está praticando uma verdadeira estratégia de sabotagem para que evitar que o novo governo obtenha êxito em sua trajetória. Na verdade, Campos Neto faz uma dupla afinada com os interesses dos grandes meios de comunicação, exigindo que Lula abra mão de seu programa e adote a continuidade do austericídio como plataforma de seu terceiro mandato. Não é por acaso ou por mera coincidência que outro bolsonarista-raiz, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, também está criando todo tipo e dificuldade para a vida do Presidente da República naquela Casa.
Reduzir a SELIC e a conta de juros.
Caso a SELIC não seja rebaixada de patamar, é bastante provável que o total das despesas com juros da dívida pública ao longo de 2023 supere a casa de R$ 700 bi. Uma loucura! Mas nada disso causa estranhamento e desconforto junto aos disciplinados articulistas a soldo do financismo, uma vez que, formalmente, despesa financeira não pressiona o déficit primário. Assim, eles seguem esbravejando apenas contra os gastos com a área social, com os salários dos servidores e com os investimentos públicos. Afinal, estas são as rubricas que, de acordo com os catastrofistas sempre de plantão, estariam quebrando o País. Como Lula já deixou claro que não pretende recuar em sua estratégia de “fazer mais e melhor” em sua terceira passagem pelo Planalto, os tais dos comunicados do COPOM, divulgados ao final de toda reunião do órgão realizada a cada 45 dias, seguirão apontando para a “gravidade do risco fiscal e do retorno inflacionário”. E dá-lhe disposição de seguir mantendo a SELIC nas alturas.
Lula sabe muito bem que está em uma sinuca de bico neste quesito da política monetária. No entanto, não será por meio da postura de bom mocismo ensaiada pelo Ministro da Fazenda que logrará superar esse impasse. Fernando Haddad vem buscando atender às expectativas do povo da Faria Lima, na ilusão de que conseguirá dobrar as resistências da nata do financismo à sua gestão na economia, em particular, e ao novo mandato de Lula, em geral
O Presidente da República tem a seu favor a capacidade de criar uma grande frente contra os juros elevados, envolvendo lideranças empresarias, sindicais e os partidos mais autênticos de sua base de sustentação. O isolamento político de Campos Neto e dos diretores da herança maldita de Bolsonaro é o caminho para tentar reverter a lógica neoliberal na cúpula daquele órgão. A tecnocracia financista precisa ser pressionada a mudar o seu comportamento e a se adaptar à nova realidade de um País que deseja romper com o desastre provocado pelo governo passado e abrir o caminho para o desenvolvimento econômico e social. Caso contrário, que peçam demissão e voltem a trabalhar diretamente, sem intermediários, para o povo da finança.
Doutor em Economia e membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal.