Lição de história: Desigualdade odienta

Lição de história: Desigualdade odienta

Os Anos Gloriosos, ou Trinta Gloriosos, é o nome dado ao período entre 1945 e 1975, seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial. Este período foi marcado por um forte crescimento econômico e social em muitos países desenvolvidos, em particular os membros da OCDE.

A narrativa histórica de Morgan Housel (A Psicologia Financeira: lições atemporais sobre fortuna, ganância e felicidade. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2021) propicia entender a reviravolta na história econômica norte-americana. O ano de 1973 deixou nítido: a economia estava trilhando um novo caminho.

A recessão começou naquele ano e levou o desemprego ao nível mais alto desde a década de 1930. A inflação disparou e, ao contrário dos eventuais picos do Pós-Guerra, permaneceu alta. As taxas de juros de curto prazo atingiram 8% em 1973, com um aumento em relação a uma década antes.

No contexto político, havia a Guerra do Vietnã, as revoltas estudantis, os assassinatos de Martin Luther King Jr. e de John e Bobby Kennedy, a renúncia de Nixon. Na virada da década de 1970, o domínio da economia mundial pelos Estados Unidos começou a ser questionado. O Japão estava crescendo. A economia da China passou a se abrir. O Oriente Médio estava exercendo seu poder de cartel em relação ao petróleo.

Segundo Morgan Housel, “Finanças se baseiam em dados dentro do contexto das expectativas. Uma das maiores mudanças do último século aconteceu quando os ventos econômicos começaram a soprar em uma direção diferente, e desigual, mas as expectativas das pessoas ainda estavam enraizadas em uma cultura de igualdade do Pós-Guerra”.

Não era igualdade de renda, embora a desigualdade tivesse diminuído. Mas antes havia maior igualdade no estilo de vida e nas expectativas de consumo. Alguém no meio da pirâmide de riqueza não vivia uma vida extraordinariamente diferente de alguém nas camadas superiores.

Expectativas sempre mudam com mais lentidão diante os fatos. Os fatos econômicos do período entre o início dos anos 1970 e o início dos anos 2000 mostraram: o crescimento continuou, mas se tornou mais desigual. As pessoas continuam a comparar seu estilo de vida ao de seus pares.

Ainda no início da Era Neoliberal com Ronald Reagan, em 1984, as taxas de juros foram fixadas em cerca de metade do recorde do ano de 1980, auge do monetarismo, quando explodiu a crise do endividamento externo de países submissos à “reciclagem dos petrodólares”. A retomada do crescimento do PIB foi a maior desde a década de 1950. Em 1989, havia 6 milhões de americanos desempregados a menos se comparado a sete anos antes.

O S&P 500 (abreviação de Standard & Poor’s 500, é um índice composto por quinhentas ações cotados nas bolsas de NYSE ou NASDAQ) aumentou quase quatro vezes de valor entre 1982 e 1990. O crescimento total do PIB na década de 1990 foi aproximadamente igual ao da década de 1950: 40%, contra 42%.

A maior diferença entre a economia norte-americana do período 1945-1973 e a do período 1982-2000 foi essa mesma quantidade de crescimento ter encontrado seu caminho rumo a bolsos totalmente distintos. Entre 1993 e 2012, o 1% do topo viu sua renda crescer 86,1%, enquanto os 99% da base tiveram um crescimento de apenas 6,6%.

Joseph Stiglitz, ganhador de Nobel de Economia, escreveu em 2011: “Embora o 1% do topo tenha visto sua renda aumentar 18% na última década, os do meio viram sua renda cair. Para aqueles com apenas o Ensino Médio, o declínio foi vertiginoso -12% somente no último quarto de século”.

Foi quase o oposto da aproximação social ocorrida no Pós-Guerra. Segundo Morgan Housel, “a desigualdade acentuada se tornou algo presente ao longo dos últimos 35 anos, um período no qual, culturalmente, os americanos ainda estavam apegados a duas noções enraizadas na economia desde o Pós-Guerra: uma, todo mundo deve ter um estilo de vida semelhante, outra, assumir dívidas para financiar esse estilo de vida é algo normal”.

O crescimento da renda de um pequeno grupo de americanos provocou uma ruptura no estilo de vida. Eles compraram casas maiores, carros melhores, frequentaram escolas caras e tiraram férias em lugares chiques. A cultura de igualdade, surgida entre os anos 1950 e 1970, se transformou em uma cultura de competição com os vizinhos.

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Por exemplo, um banqueiro de investimentos ganha 900 mil dólares por ano, compra uma mansão de quatrocentos metros quadrados com duas Mercedes na garagem e manda seus filhos para Universidades reconhecidas por sua excelência acadêmica. Ele pode pagar por tudo isso, enquanto um gerente de banco ganha 80 mil por ano, olha-o e tem a sensação subconsciente de ter o direito de viver um estilo de vida semelhante.

Então, o que faz? Ele faz uma hipoteca enorme. Contrai 45 mil dólares em dívidas nos seus cartões de crédito. Financia dois carros. Seus filhos vão se formar graças a pesados financiamentos estudantis. O gerente não pode pagar pelas coisas possíveis para o banqueiro, mas é pressionado a buscar o mesmo estilo de vida.

Desde o fim da II Guerra, promoveu-se a aceitação cultural do endividamento familiar. Quando os salários médios permaneceram estáveis, a nova casa média americana passou a ser 50% maior, ter mais banheiros diante o número de moradores. Quase metade tem quatro ou mais quartos, contra 18% em 1983.

O valor médio do empréstimo para compra de carros, ajustado pela inflação, foi além do dobro, entre 1975 e 2003, passando de 12.300 para 27.900 dólares. Os custos da Faculdade levou aos impagáveis empréstimos estudantis.

A dívida das famílias em relação à renda permaneceu praticamente estável de 1963 a 1973. Depois, subiu ininterruptamente, de cerca de 60% em 1973 para mais de 130% em 2007. Esse aumento ocorreu muito mais nas camadas de baixa renda.

O endividamento caiu bastante, depois de 2008, porque as taxas de juros despencaram. O percentual da renda das famílias dedicado ao pagamento de dívidas está agora no nível mais baixo em 35 anos.

A flexibilização quantitativa evitou o colapso econômico, mas impulsionou a inflação dos ativos, uma enorme vantagem para aqueles já detentores de ações — majoritariamente os ricos. Os cortes de impostos dos governos neoliberais, como o de Trump, afetaram predominantemente aqueles com rendas mais altas.

Essas pessoas mandam seus filhos para as melhores Universidades. Seus filhos continuarão a ter uma renda mais alta, investir em dívidas corporativas sustentadas pelo Fed, possuir ações sustentadas por várias políticas governamentais etc.

A economia norte-americana funciona melhor para algumas pessoas em vez de ser para outras. Foi deixando de atender às expectativas estabelecidas no Pós-Guerra: a existência de uma ampla classe média sem desigualdade sistemática, na qual “seus vizinhos vivem uma vida muito parecida com a sua”.

O Tea Party, o movimento Occupy Wall Street, o Brexit e Donald Trump representam, cada um, um grupo gritando: – “Não vivo no mundo no qual outros vivem. Isso me irrita. Então, f***-se! Voto em qualquer promessa totalmente diferente, porque isso aqui não está funcionando para mim!”

Pegue essa mentalidade destrutiva e multiplique-a pelo poder do Facebook, do Instagram e dos noticiários — nos quais as pessoas ficam mais cientes diante a como os outros vivem. E encontram seus pares em redes de ódio e câmaras de eco.

Housel diz não ser pessimista. A Economia é a história dos ciclos. As coisas vêm e vão. A taxa de desemprego hoje, nos Estados Unidos, é a mais baixa das últimas décadas. Os salários estão agora crescendo mais rápido para trabalhadores de baixa renda comparado aos dos ricos. Os custos das universidades em geral pararam de crescer depois de subsídios terem sido implementados.

Mas, como ele disse antes, “as expectativas mudam de maneira mais lenta diante a realidade”. A expectativa de as probabilidades estarem contra todo mundo, exceto contra aqueles no topo, continua viva.

Talvez por isso a era do “isso não está funcionando” não vá embora. A era do “precisamos de algo radicalmente novo, agora, não importa o que seja” pode perdurar. Esse mentalidade fascista deu início a eventos provocadores da Segunda Guerra, o ponto de partida desse ciclo.

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