Transição para o capitalismo político na China

Transição para o capitalismo político na China

Branko Milanović narra, no livro “Capitalismo Sem Rivais: O futuro do sistema que domina o mundo” (São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2020, 376 páginas), uma história de conhecimento fundamental para o entendimento do cenário mundial. Antes de 1978, a China possuía uma economia planificada, com a maioria das indústrias pertencendo ao Estado.

A partir de 1978, com a introdução de reformas econômicas, houve uma redução da participação estatal na produção e um aumento do setor privado. Na agricultura, o sistema de responsabilidade permitiu o arrendamento privado de terras, levando à produção em grande parte privada.

As empresas localizadas em pequenas cidades e vilarejos (empresas de propriedade coletiva) também contribuíram para o crescimento econômico. Utilizam mão de obra assalariada e uma estrutura de propriedade complexa.

O papel do Estado no PIB, calculado em termos de produção, dificilmente passa de 20%, enquanto a mão de obra empregada em empresas estatais e coletivas corresponde a 9% do total. Esses percentuais são semelhantes aos registrados na França no início dos anos 1980.

Segundo Branko Milanović, a China opera sob um modelo de capitalismo político, no qual o Estado desempenha um papel-chave, além de ser um mero representante, por meio da propriedade formal do capital. O Capitalismo Político chinês combina um setor privado dinâmico com uma burocracia bem-formada e um sistema político de partido único (PCCh).

O Estado mantém autonomia em relação ao setor privado, preservando o interesse nacional e controlando o setor privado. A lei é aplicada de forma flexível e seletiva – “aos amigos os favores, aos inimigos a lei” a la Maquiavel –, com zonas sem lei, onde a vigência normal da lei é suspensa.

Apesar do crescimento econômico, a China experimentou um aumento da desigualdade de renda, especialmente após a transição para o capitalismo. A desigualdade na China aumentou quase 20 pontos Gini entre meados dos anos 1980 e 2013. A desigualdade salarial cresceu, com trabalhadores mais qualificados se distanciando dos menos qualificados.

 A corrupção é endêmica e sistêmica no Capitalismo Político chinês. Ela é agravada por condições internacionais, como a existência de organizações capazes de ajudar a esconder ganhos ilegais.

Apesar de a China ser governada por um Partido Comunista, sua economia é inequivocamente capitalista, com propriedade privada, trabalho assalariado e decisões de produção e preços descentralizadas. O modelo de capitalismo político da China combina um setor privado dinâmico com um forte controle estatal. Isto a diferencia do Capitalismo Meritocrático Liberal ocidental.

A metáfora de um pássaro engaiolado explica o papel adequado para o setor privado: “se o setor privado for controlado de forma excessivamente estrita, ele irá, como um pássaro aprisionado, sufocar; se for deixado totalmente livre, fugirá para outro lugar”. Assim, a melhor maneira seria acomodar o pássaro dentro de uma gaiola bastante espaçosa.

A transição para o Capitalismo Político trouxe prosperidade, mas também problemas como o aumento da desigualdade e da corrupção. A complexidade das relações de propriedade e a importância do Estado na economia chinesa são aspectos distintivos da China de outros modelos capitalistas.

Os Estados praticantes do Capitalismo Político hoje em dia, em especial China, Vietnã, Malásia e Singapura, modificaram esse modelo inserindo uma burocracia altamente eficiente e tecnocraticamente segura para cuidar do sistema. A burocracia precisa ser tecnocrática e a seleção de seus membros tem de se basear no mérito, caso almeje ser bem-sucedida, sobretudo quando não vigora o predomínio absoluto da lei.

O Capitalismo Político é um modelo distinto do Capitalismo Meritocrático Liberal. Apresenta características próprias em termos de traços sistêmicos e contradições internas.

O primeiro dos traços sistêmicos e a burocracia eficiente. O capitalismo político é caracterizado por uma burocracia tecnocrática muito qualificada, encarregada de promover o crescimento econômico e implementar políticas cuja meta é esse objetivo. Essa burocracia é, geralmente, a principal beneficiária do sistema. A seleção dos membros da tecnocracia é baseada no mérito, visando garantir o sucesso, especialmente quando o primado da lei é fraco.

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O segundo é a ausência do primado da lei. Uma característica central do Capitalismo Político é a ausência do predomínio absoluto da lei. As decisões são tomadas de forma arbitrária e discricionária, sem a necessidade de seguir regras estritas. Isso possibilita o Estado tomar decisões rápidas, mas também abre espaço para a corrupção. A lei é aplicada seletivamente – e há zonas sem lei, onde a vigência normal da lei é suspensa.

 O terceiro é a autonomia do Estado. Ele mantém uma autonomia em relação ao setor privado, permitindo-lhe seguir políticas de interesse nacional e, se necessário, controlar o setor privado. O Estado tem a capacidade de refrear os interesses dos capitalistas, preservando sua autonomia para agir de forma decisiva. Essa autonomia é uma característica mercantilista ao permitir ao Estado conduzir políticas econômicas e políticas externas sem grandes restrições.

Quanto às contradições sistêmicas, a primeira é a contradição entre burocracia e discricionariedade. Existe uma contradição entre a necessidade de uma elite tecnocrática e qualificada e o fato de essa mesma elite operar sob condições de aplicação seletiva da lei. A elite tecnocrática é educada para seguir regras e atuar dentro de um sistema racional, mas a arbitrariedade na aplicação das regras mina esses princípios. Há um choque entre a necessidade de uma gestão impessoal dos negócios, exigida por uma burocracia eficiente, e a aplicação discricionária da lei.

A segunda é a contradição entre desigualdade/corrupção e legitimação. O sistema enfrenta uma contradição entre a desigualdade e a corrupção crescentes. São endêmicas, devido ao poder discricionário da burocracia, e à necessidade de monitorar a desigualdade para fins de legitimação do sistema.

O poder discricionário da burocracia chega a ser usado para obter ganhos financeiros pessoais, ou seja, leva a uma corrupção endêmica. A corrupção, embora tolerada em níveis moderados, ameaça a integridade da burocracia e a sua capacidade de promover o crescimento econômico.

A necessidade de monitorar a desigualdade surge para manter a estabilidade e evitar a perda de apoio popular. Afinal, a população tolera a falta de participação política se há progresso no padrão de vida e uma administração da justiça aceitável, porém, caso isso declinar, aflorarão os motivos para revolta popular.

Além da China, o exemplo paradigmático, existem pelo menos mais dez países sob sistemas de Capitalismo Político. Esses países compartilham algumas características em comum, incluindo um sistema político de partido único (formal ou de fato), e a sua formação após lutas de independência nacional. A maioria desses países foi colonizada ou teve um estatuto formal similar antes de sua independência, e muitos passaram por lutas violentas, incluindo guerras civis.

Como modelo paradigmático do capitalismo político, combinando um setor privado dinâmico com uma burocracia eficiente e um sistema político de partido único, a China também promove ativamente seu modelo para outros países. São eles: Vietnã, Singapura (apresenta um baixo Índice de Percepção da Corrupção – IPC), Malásia, Rússia (um partido no poder há várias décadas), Etiópia,  Argélia, Ruanda, Birmânia (Myanmar), outros países do Cáucaso e da Ásia Central.

Em termos de corrupção, seis dos onze países listados exibem resultados significativamente piores diante a média global. Botsuana e Singapura são exceções, apresentando baixos níveis de corrupção, enquanto a China está um pouco melhor diante a média. O IPC mede a percepção da corrupção no setor público, de acordo com especialistas e empresários.

Em síntese, o Capitalismo Político se sustenta em uma burocracia eficiente, mas opera sob uma aplicação seletiva e arbitrária da lei e com um Estado autônomo controlador do setor privado – e não vice-versa, como ocorre no Capitalismo Meritocrático Liberal do Ocidente. Essas características geram contradições internas com potencial de afetarem a sua estabilidade e legitimidade.

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