A remuneração do juiz é maior do que a da maioria das pessoas que ele julga?

A manutenção de privilégios das classes mais ricas é mais fácil se a população for educada em aulas padronizadas dadas em tablets reluzentes, sem espaço para desenvolvimento da criatividade ou da criticidade, como se tem feito no estado de São Paulo.
POR ANA NORONHA
Em 30 de maio de 2025, na Folha de São Paulo, nos deparamos com uma coluna de Laura Müller Machado intitulada “Piso de professores é maior do que a remuneração de 94% dos pais de alunos”. Nela, a economista, professora do Insper e ex-secretária do Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo expõe comparações entre o piso salarial nacional dos professores com o salário de outros grupos de profissionais brasileiros.
A colunista da Folha afirma que “Na Pnad de 2023, 94% dos pais de estudantes da educação básica declararam remuneração inferior ao piso salarial nacional dos professores daquele ano, de R$ 4.420.” E complementa: “Assim, os professores estavam entre os 6% de maior remuneração.” Mesmo com a ressalva, colocada pela colunista, de essa comparação é válida apenas para os casos do cumprimento do piso nacional, o que não acontece em São Paulo nem em vários outros estados da federação, tal afirmação conduz ao engano – a maioria de nós lê salário no lugar de piso, como sinônimos – e produz indignação em quem tem um pouco mais de informação a respeito do tema ou em quem tem olhos um pouco mais críticos.
O título deste nosso texto é, claro, uma provocação, um click bait, da qual não temos comprovação, mas que deve estar muito próxima da verdade. Certamente, é a primeira vez que se vê esse tipo de afirmação em relação ao juiz e seus ganhos. Também não se vê manchetes semelhantes em relação a, por exemplo, um médico do SUS, embora se possa afirmar que sua remuneração seja maior do que a quase totalidade das pessoas que atende. Ambos profissionais são portadores de um diploma de nível superior, como professores também são. Qual poderia ser, então, o sentido da comparação feita pela colunista ao tratar assim a profissão docente?
Em seu texto, Machado apresenta uma série de comparações rasas entre os ganhos dos docentes e outras profissões com carteira assinada e ensino superior, ou com outros profissionais do ensino público, ou com professores da rede privada – e só então fica evidente que “os professores” do título do texto são aqueles que trabalham na rede pública. As comparações com outras profissões de nível superior ou entre salários de docentes na iniciativa pública, ou privada carece de maior contextualização. Por exemplo, quando se diz que o salário nas escolas públicas é maior do que nas escolas privadas, exceto em SP e MG, está se levando em conta que nesses estados a rede pública está defasada (diferentemente de estados como o MA) e a rede particular é grande e inclui escolas internacionais e de elite? No entanto, a despeito de a informação do título da coluna estar ou não correta, a questão é outra.
A princípio, incomoda o olhar sempre enviesado daqueles que têm para a economia uma perspectiva muito financista, em uma argumentação que só fala em receitas e despesas e não tem um mínimo de sensibilidade para fatores menos tangíveis, como qualidade ou bem-estar, para fatores humanos ou mesmo para o que deveria estar verdadeiramente no radar de um economista: o futuro do país. Educação é vista como gasto, custo, no onipresente discurso de que “se pode fazer mais com menos”. É um olhar limitado e limitante sobre o que seja economia, que vai muito além de custos, e, depois, sobre o que seja educação. Trata-se de uma miopia produzida pelo mercado econômico que tem uma única maneira de ver o mundo: em cifrões. Mas façamos uma ressalva: será que pensam assim a respeito da educação dos próprios filhos, ou essa métrica só serve para os filhos dos outros?
Ainda mais incômoda é a pergunta sobre o que significa afirmar que os professores estão entre os 6% de pessoas com maior remuneração, mesmo que “de acordo com a Pnad”. Dá a entender que os professores ganham muito ou que deveriam ganhar menos, pois, afinal, os pais de seus alunos ganham muito menos – de que parâmetro se trata aqui? As notícias recentes nos revelam que nos encontramos em um contexto no qual se constata a naturalização da violência contra os professores, em que se mostra que muitos professores têm abandonado a carreira, não têm retornado à sala de aula ou pensam em deixá-la e em que se prenuncia para o Brasil e para o mundo um apagão de professores motivado, principalmente, pela desvalorização da profissão, pela alta carga de trabalho invisibilizado, pela violência crescente contra docentes. Dizer que os professores ganham mais do que 94% dos pais de seus alunos ou, mais ainda, que eles estão “nos 6% de maior remuneração”, atende a quais propósitos?
Talvez não tenha tido essa intenção, mas o texto da economista se soma aos ataques constantes que se tem visto, na cena pública, ao saber e àqueles responsáveis por sua construção. A manutenção de privilégios das classes mais ricas é mais fácil se a população for educada em aulas padronizadas dadas em tablets reluzentes, sem espaço para desenvolvimento da criatividade ou da criticidade, como se tem feito no estado de São Paulo. Há um efeito ilusório de que aqueles que detêm algum poder estão a salvo do caos na educação e na sociedade brasileiras. Creem que por poderem pagar por escolas particulares para seus filhos não sofrerão com os efeitos de políticas públicas cada vez mais precarizadas e com o massacre dos professores e sua não apenas desvalorização, mas desqualificação perante a opinião pública. Parecem não compreender a força e a importância da coletividade e usam de números enviesados para trazer ares tecnicistas e produzir argumentos que aumentam o descrédito das escolas públicas na figura do professor. Essa ideologia de que o serviço público é caro e não presta e de que se pode prescindir do Estado como organizador social é aceita com naturalidade até mesmo por pessoas que estudaram em renomadas escolas e nelas adquiriram um raciocínio que, ainda que sofisticado e complexo, não ultrapassa a vista das altas janelas dos luxuosos edifícios de São Paulo capital.
A vida e as atividades humanas não podem se restringir aos números que organizam a coletividade. Outras dimensões precisam ser consideradas, como, por exemplo, a que tão bem tem sido abordada pela cientista Suzana Herculano-Houzel, que enxerga a escola como esse lugar que nos faz humanos porque é onde se assegura a transmissão do conhecimento acumulado. Esse modo de ver a escola e, consequentemente, o papel dos professores, é muito diferente daquele trazido por Machado. Não basta iniciar um texto dizendo que os professores são “uma das profissões mais importantes do país” quando o mesmo texto serve para fomentar dúvidas quanto à legitimidade da dificuldade do exercício da docência neste país.
Em tempo: há outro texto recente da mesma colunista, Mais professores, menos vagas: o impasse silencioso da docência no Brasil, no qual se coloca a preocupação com o fato de o país estar formando “o dobro de professores do que o mercado pode absorver”. Essa afirmação é feita a partir de uma inferência sobre a demanda de professores a partir do número apontado pelo IBGE para o Censo escolar em 2024 para as vagas existentes e está na contramão de outros estudos, como o da Semesp, e de alerta da ONU em nível mundial para uma necessidade de mais 44 milhões de professores para que se possa alcançar os ODS sobre a Educação em 2030 – no qual se inclui o Brasil. A demanda por professores é imensa, assim como a demanda por melhores salários e condições de trabalho para eles. A confecção de uma coluna inteira sobre uma falsa premissa a respeito de números facilmente encontráveis nas redes, que conduz à construção de opiniões equivocadas e desfavoráveis sobre a educação brasileira, como apontamos neste texto, mostram que há muitos outros interesses em jogo.
Ana Noronha é doutora em Linguística e Semiótica, professora e pesquisadora na Unesp.

Foto de capa: Isabel Sacco/Wikimedia Commons

Ana Noronha é doutora em Linguística e Semiótica, professora e pesquisadora na Unesp