Crise climática fomenta diálogo e ódio ao agronegócio no Brasil

Crise climática fomenta diálogo e ódio ao agronegócio no Brasil

A agricultura brasileira está cada vez mais enérgica, sendo o segundo maior produtor de etanol do mundo, atrás apenas dos EUA, e com o aumento da mistura de biodiesel no diesel fóssil para 15% em 2026. Localmente é considerada uma forma concreta de participação no esforço para mitigar as alterações climáticas.

POR MARIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – Sem “extirpar o agronegócio”, o Brasil não terá “viabilidade como sociedade e como natureza”, é o veredicto de um acadêmico que expressa o antagonismo entre o ambientalismo e a agricultura em grande escala diante da crise climática.

É o “inimigo número um do Brasil”, acusou Luiz Marques, sociólogo, professor aposentado da Universidade de Campinas, cidade do sul do estado de São Paulo, em sua diatribe contra a agricultura em grande escala voltada para a exportação, que gerou reações iradas por parte de agricultores nas redes sociais.

Além de saquear a natureza e concentrar riquezas, controla o Congresso Nacional por meio da “bancada ruralista”, que conta com maioria de deputados e senadores para promover leis contra o meio ambiente, argumentou o professor em entrevista ao meio digital “O joio e o trigo” em 17 de setembro.

Os incêndios florestais, que se tornaram incontroláveis ​​em grande parte do país desde junho e cobrem atualmente 80% do território nacional com fumaça, intensificaram acusações e temores, mas também estimularam tentativas de diálogo entre ambientalistas e uma parte do agronegócio apelidada de “moderna”.

Crimes ambientais externos

Não é justo atribuir a culpa do desmatamento ao agronegócio, responsável pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, defende Pedro de Camargo Neto, pecuarista que já ocupou cargos importantes no Ministério da Agricultura e presidiu a Sociedade Rural Brasileira.

Quase todo o desmatamento da Amazônia é ilegal, devido à atividade criminosa de “grileiros”, invasores que ocupam terras públicas, “garimpeiros” (principalmente garimpeiros ilegais) e madeireiros. “É responsabilidade do governo e da polícia reprimi-los, e não do agronegócio”, disse à IPS.

Em relação às queimadas, o “produtor agrícola é um dos mais prejudicados, é um perdedor”, disse ele por telefone de Bandeirantes, município de apenas 8 mil habitantes no centro-oeste do estado de Mato Grosso do Sul, onde tem uma fazenda.

Não propomos o fim da propriedade privada ou do crédito agrícola, mas a bancada ruralista mostra hostilidade ao ambientalismo, propondo leis contra o meio ambiente e as florestas amazônicas, Marcio Astrini.

A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) estimou perdas do agronegócio no equivalente a 2,7 bilhões de dólares, devido às queimadas de junho a agosto, que queimaram 2,8 milhões de hectares de vegetação em propriedades rurais. Essa contagem não inclui setembro, o pior mês.

Com o país em chamas por quatro meses, após as enchentes que afetaram mais de 2,4 milhões de pessoas e deixaram pelo menos 183 mortos no estado do Rio Grande do Sul, o momento é propício ao diálogo, reconheceram Camargo e os ambientalistas, apesar do acúmulo de conflitos, ressentimentos, preconceitos e reclamações do passado.

O rio Manaquiri, no coração da Amazônia brasileira, virou apenas um fio d’água devido à pior seca da região e ficou coberto de fumaça causada pelos incêndios florestais no dia 10 de setembro. As duas tragédias climáticas se juntam perto de Manaus, capital do estado do Amazonas. Imagem: Ricardo Stuckert/PR.

Aliança para biocombustíveis

Camargo propõe, por exemplo, a promoção dos biocombustíveis como ponte entre os ambientalistas e o agronegócio, como forma de reduzir o uso de combustíveis fósseis, maior fonte de emissões de gases que aquecem o planeta.

Juntos devem se opor à exploração de petróleo na chamada Margem Equatorial, que inclui a área da foz do rio Amazonas, onde se imagina que exista grande riqueza em hidrocarbonetos, já que as abundantes jazidas descobertas no Suriname e na Guiana estão próximas.

Um aumento na oferta que barateie os hidrocarbonetos fósseis conspira contra biocombustíveis como o etanol, o biodiesel e o biogás que gera eletricidade ou o biometano, substituto perfeito do gás natural, do qual o Brasil é ou pode ser um grande produtor, argumenta Camargo.

Na década de 2010, uma política governamental de redução forçada dos preços da gasolina gerou uma grave crise na indústria do etanol de cana-de-açúcar. O setor foi desnacionalizado com a venda de empresas falidas a grupos estrangeiros.

A agricultura brasileira está cada vez mais enérgica, sendo o segundo maior produtor de etanol do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e com o aumento da mistura de biodiesel no diesel fóssil para 15% em 2026. Localmente é considerada uma forma concreta de participação no esforço para mitigar as alterações climáticas.

Um incêndio queimou metade do Parque Nacional de Brasília em meados de setembro, a poucos quilômetros do legislativo Congresso Nacional, onde representantes do agronegócio aprovam leis que enfraquecem as regras ambientais e retiram os direitos dos povos indígenas, guardiões das florestas. Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

Contradição

Mas o setor vive uma contradição, com a sua maioria de produtores e a sua poderosa representação no legislativo Congresso Nacional se opondo às medidas ambientais e às medidas de contenção da crise climática, mesmo sendo totalmente dependente do clima, especialmente das chuvas.

Atualmente, a chamada “bancada ruralista” promove 25 projetos de lei que flexibilizam ou eliminam as regulamentações ambientais e restringem os direitos indígenas às suas terras ancestrais.

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Camargo faz parte de um grupo de 13 líderes do “agronegócio moderno” que tentam influenciar o desenvolvimento das novas metas climáticas brasileiras, dentro das chamadas Contribuições Nacionalmente Intencionadas e Determinadas (NDC), que são o pilar do Acordo de Paris, 2015, para conter o aumento das temperaturas.

O Brasil e os demais países participantes deverão submeter uma atualização de suas NDC até 25 de fevereiro às autoridades da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), que monitora o cumprimento desses compromissos nacionais voluntários.

Os dirigentes apresentaram as suas propostas no dia 2 de setembro numa carta aberta ao Secretariado Nacional das Alterações Climáticas, na qual reconhecem o aquecimento global como causa de eventos extremos e o interesse do setor agrícola em reduzir as suas emissões de gases com efeito estufa.

Mas sugerem que o Brasil evite ampliar suas metas de redução de emissões e priorize o cumprimento das metas já acordadas e a adaptação aos efeitos já visíveis. O desmatamento ilegal deve ser eliminado antes de combater o desmatamento legal, disseram.

Líderes de cinco organizações ambientalistas criticaram os representantes do “agro moderno” por proporem um retrocesso num momento de definição das novas metas para o período 2030-2035 e de eventos extremos não só no Brasil, que exigem maior ambição para conter as emissões de gases de efeito estufa .

O “agro moderno” não nega as mudanças climáticas como grande parte do setor, o chamado “agronegócio”, mas discorda do que está sendo feito, segundo Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima (OC), rede de 119 organizações da sociedade civil.

O Pacto pela Transformação Ecológica, assinado em 21 de agosto em Brasília, uniu os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em favor do desenvolvimento sustentável, sem as tragédias ambientais e climáticas que o Brasil sofre. Mas faltou a participação da sociedade, das empresas e da agricultura. Imagem: Cláudio Kbene/PR.

Discrepância nas metas climáticas

O Observatório propôs uma NDC que reconheça as práticas e tecnologias do setor agrícola brasileiro que reduzem emissões, como a semeadura direta, a fixação biológica de nitrogênio e o uso de resíduos para geração de energia elétrica, e que deve ser ampliada.

“Reconhecemos o setor agrícola como uma solução possível, como protagonista na redução das emissões, que beneficiaria ao reduzi-las”, por isso não é compreensível a posição do “agro moderno”, difícil de se sustentar nos fóruns internacionais, ante o risco de um aumento de três graus na temperatura global, destacou Astrini.

O Observatório está aberto ao diálogo com o agronegócio e não se considera responsável pelo antagonismo estabelecido, disse à IPS por telefone desde Nova York, onde participava da Semana do Clima, fórum de debate promovido pelo Grupo do Clima em associação com a Assembleia Geral das Nações Unidas.

“Não propomos o fim da propriedade privada ou do crédito agrícola, mas a bancada ruralista mostra hostilidade ao ambientalismo, propondo leis contra o meio ambiente e as florestas amazônicas”, frisou.

Um grande obstáculo é que o “agro moderna” não se dissocia dos seus colegas que desmatam, invadem terras públicas e violam as leis ambientais, nem os critica, “tarefa que não é nossa”, concluiu.

Não há diálogo possível com a pecuária extensiva, segundo João Meirelles, diretor-geral do Instituto Peabiru, organização social com sede em Belém, porta de entrada da Amazônia e cidade de 1,4 milhão de habitantes que sediará a 30ª Conferência. Partes (COP30) da UNFCCC, em novembro de 2025.

É um segmento que “não aprendeu a se modernizar, avança nas fronteiras de ocupação ainda abertas no Brasil, destrói as microbacias hidrográficas, compacta o solo, queima os campos. As queimadas fazem parte do DNA deles”, disse Meirelles à IPS, por telefone da cidade de Ribeirão Preto, no sul do país, onde visitava familiares.

Com as grandes empresas mais responsáveis ​​há diálogo e até acordos, lembrou. Um exemplo é a “Moratória da Soja”, assinada em 2006 por empresas, como indústrias petrolíferas, que prometeram não comprar grãos plantados em terras desmatadas a partir de 2008.

“O diálogo é bem-vindo porque há interesses comuns entre os verdadeiros produtores e o ambientalismo, eles precisam de chuva, de bons solos, de tudo o que os ambientalistas exigem”, afirmou Délcio Rodrigues, diretor executivo do não-governamental Instituto ClimaInfo, dedicado à informação e debates climáticos.

Os biocombustíveis favorecem a aliança, mas “a base comum para o diálogo é isolar o ‘agronegócio’, a criminalidade de quem invade terras indígenas, rouba terras públicas e viola ou tenta enfraquecer a legislação ambiental”, disse também à IPS na Semana do Clima, em Nova York.


FOTO DE CAPA: “Brasil em chamas, petróleo e latifúndios matam”, diz uma faixa durante a Marcha do Clima, no dia 20 de setembro, no Rio de Janeiro. O cartel atribui os incêndios mortais que se espalharam pelo Brasil e outros países da América do Sul em agosto e setembro aos combustíveis fósseis e ao agronegócio, agricultura de monocultura dedicada à exportação. Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

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