Argentina: um Milei triunfante aprofunda seu programa de ultradireita

Por Daniel Gutman
BUENOS AIRES – Ele passou os últimos meses na defensiva. Como se tivesse encontrado um limite no caminho vertiginoso que, em 2023, o levou de um polêmico comentarista de TV à presidência da Argentina. Como se o personagem que atraiu, com sua fúria, uma maioria de argentinos igualmente furiosos tivesse sucumbido à realidade de um país que, desde sua chegada ao poder, afundou ainda mais em seu longo processo de deterioração econômica e social.
Tanto foi assim que, diante do desafio das eleições legislativas de meio de mandato, o ultradireitista Javier Milei parecia já ter aceitado um resultado modesto, que o obrigaria a buscar diálogo e consensos que ele desprezou desde o início de seu governo. Chegou até a abandonar os insultos constantes, com os quais havia instalado um clima de ódio e vulgaridade permanentes no debate público.
Surpreendentemente, porém, venceu com ampla margem a eleição de domingo, 26, e saiu fortalecido para levar adiante seu programa radical de reformas.
“Na cabeça de quem estava a ideia de que poderíamos ganhar a província de Buenos Aires?”, surpreendeu-se o próprio Milei ao voltar a um estúdio de TV na manhã seguinte à eleição, ainda com a ressaca de uma comemoração inesperada, enquanto o poder econômico fazia sua própria festa, refletida na disparada dos indicadores do mercado financeiro.
Buenos Aires, o maior distrito do país, concentra quase 40% dos eleitores, e lá o peronismo — principal força política dos últimos 80 anos — havia vencido em 7 de setembro uma eleição legislativa provincial, por 14 pontos de diferença. Essa derrota esmagadora se transformou em vitória em apenas 50 dias, algo que os analistas políticos têm dificuldade em explicar.
Mas o domingo eleitoral trouxe muito mais que isso à ultradireita: A Liberdade Avança — partido fundado por Milei apenas em 2021 — venceu em 16 das 23 províncias do país e superou 40% dos votos totais, com mais de 15 pontos de vantagem sobre o peronismo.
“O resultado inesperado nos obriga a perguntar em que medida os eleitores de Milei votaram por encanto ou por medo”, disse à IPS o analista político Lucas Romero.
“O cenário é de desaceleração da economia, destruição de empregos, queda do poder de compra e preocupação com a corrupção. Isso leva a pensar que os votos não refletem satisfação com Milei, mas sim a sensação de que a alternativa seria pior”, acrescenta Romero, diretor da consultoria Synopsis.
Ele se refere a um peronismo que deixou o governo, em 2023, com mais de 200% de inflação anual, sem autocrítica nem renovação, e ainda tendo como líder a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, condenada por corrupção e em prisão domiciliar.
Segundo declarou Milei, seus objetivos agora são reformar os sistemas trabalhista, tributário e previdenciário, com a ideia de “mudar para sempre” este país sul-americano de 46 milhões de habitantes. As ideias que sustentam essas reformas são reduzir o Estado ao mínimo indispensável, eliminar qualquer vestígio de justiça social e remover os últimos obstáculos às forças do livre mercado, conforme o próprio Milei expressou.
Mesmo assim, embora o governo tenha ganhado força no Congresso Nacional, onde agora será a primeira minoria, continuará obrigado a negociar com a oposição, pois está longe de ter maioria tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.
Crise crônica
A Argentina vive uma crise que já se tornou crônica: há quase 15 anos não se criam empregos no setor privado, enquanto os salários dos que trabalham se deterioram — especialmente entre a crescente massa de trabalhadores informais. Essas realidades antecedem Milei. E foram justamente elas que geraram a raiva e o cansaço da sociedade com a classe política, levando o país a dar um salto no escuro nas eleições presidenciais de 2023.
Desde a chegada de Milei à presidência, porém, o cenário piorou. Dados oficiais indicam que entre novembro de 2023 e abril de 2025 foram perdidos 183.447 empregos na Argentina — mais de 55.000 no setor público, vítimas da famosa “motosserra” com a qual Milei prometeu reduzir brutalmente o tamanho do Estado.
O mal-estar social e a perda de confiança no governo de Milei foram refletidos em todas as pesquisas recentes de opinião pública, nas quais muitos trabalhadores se declaram pobres: 53% das pessoas dizem que não conseguem chegar ao fim do mês, e 30% afirmam que o fazem “com o mínimo necessário”, segundo a consultoria Escenarios.
Milei atribui a situação do emprego a uma legislação que, segundo ele, protege em excesso os trabalhadores e pune os empresários. Sua reforma promete permitir a fixação de salários por produtividade, flexibilizar os horários a critério dos empregadores e negociar salários por empresa, em vez de por categoria — o que enfraqueceria fortemente o poder dos sindicatos.
A reforma tributária propõe reduzir em 30% a carga de impostos sobre empresas e setores de maior poder aquisitivo, o que obrigaria a aprofundar ainda mais o ajuste fiscal. Até agora, esse ajuste resultou na quase eliminação das obras públicas, em uma redução de 30% nas aposentadorias e de 60% nos gastos sociais.
A reforma previdenciária, por sua vez, prevê privatização do sistema, aumento da idade de aposentadoria e eliminação das pensões por viuvez, entre outras medidas.
Trump como grande eleitor
Romero aponta que houve uma combinação de fatores fortuitos que, inesperadamente, acabaram favorecendo Milei.
O governo conseguiu uma forte redução da inflação — muito valorizada pelos argentinos — apoiada em uma expressiva valorização do peso, que se tornou cada vez mais difícil de sustentar.
Nos últimos meses, o desaquecimento da economia ficou evidente: o Banco Central perdeu reservas, surgiu uma crise cambial e a Argentina ficou à beira de um colapso econômico e financeiro — do qual Donald Trump a resgatou ao anunciar uma intervenção inédita dos Estados Unidos, com a disponibilização de 20 bilhões de dólares para sustentar o peso argentino.
Intrometendo-se de forma descarada na política argentina, Trump recebeu Milei na Casa Branca, pediu aos argentinos que votassem nele e fez o que muitos interpretaram como uma chantagem: “Se ele perder, não seremos generosos com a Argentina”, advertiu.
Poucos dias depois, o presidente norte-americano evidenciou a fragilidade de Milei ao afirmar que havia decidido ajudar os argentinos porque “eles estão morrendo; não têm nada, estão lutando por suas vidas”.
“Trump reforçou a construção de um cenário dramático em caso de derrota eleitoral de Milei”, diz Romero.
O analista conclui: “Já existia uma narrativa de que, se Milei perdesse, a economia desabaria e talvez até o governo caísse. Essa ideia penetrou tanto nos círculos politizados quanto na população comum, que provavelmente acreditou ser necessário resgatar Milei, mesmo sem estar satisfeita com seu governo.”
Este texto foi publicado originalmente pela Inter Press Service
Na imagem, um grupo de jovens participa de manifestação contra o presidente Javier Milei em Buenos Aires, empunhando um boneco que representava de forma depreciativa o mandatário argentino / Daniel Gutman / IPS

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