Confisco de bens: o alto preço econômico da repressão na Nicarágua

Confisco de bens: o alto preço econômico da repressão na Nicarágua

MANÁGUA – Desde 2018, o Estado nicaraguense executou uma série de confiscos de bens móveis e imóveis, pensões, contas bancárias e direitos trabalhistas, visando pessoas que são opositoras ou percebidas como tal, deixando-as em ruínas.

Um exemplo é o caso da família empresária de Martha Rosa Jara e Henry Briceño.

A polícia os prendeu em uma noite de novembro de 2024 em sua casa no município de San Rafael del Sur, a 63 quilômetros de Manágua. Vários carros de patrulha e dezenas de policiais de operações especiais cercaram a residência e entraram armados.

Os quatro membros da família, incluindo um menino de 11 anos, foram levados para uma delegacia de polícia na capital, onde foram informados de que estavam sendo acusados de “traição” pelas publicações de Briceño nas redes sociais.

O jornalista aposentado de 75 anos e gerente de duas das empresas da família costumava criticar no Facebook o casal copresidente da Nicarágua, o ex-líder guerrilheiro sandinista Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo.

Naquela mesma noite, a família foi entregue a uma patrulha militar na fronteira sul da Nicarágua e banida por uma vereda – uma estrada rural sem vigilância na fronteira – para a Costa Rica, sob ameaça de “rafaguearlos (atirar neles)” se tentassem retornar ao país.

“Não se trata apenas de tirar a propriedade, mas de apagar as pessoas da vida legal. Eles tiram sua nacionalidade, suas pensões, seus registros civis. É uma forma moderna de exílio permanente”: Gonzalo Carrión.

Sua casa, um pequeno albergue, um berçário e uma loja que pertenciam à família há décadas foram confiscados, juntamente com veículos, joias, contas bancárias e todos os seus bens domésticos.

“Não levamos nem mesmo nossos documentos de identidade, eles nos expulsaram apenas com as roupas que estávamos vestindo”, disse Briceño à IPS de San José, Costa Rica, onde teve de fixar residência.

“Perdemos todas as nossas economias, nossas propriedades, o sacrifício de tantos anos de esforço e sacrifício. Não tenho mais idade para abrir um processo e esperar que a ditadura caia para recuperar o que nos pertence”, disse Briceño, que calcula as perdas em um milhão de dólares.

Após seu banimento, as propriedades foram repintadas em cores diferentes e o regime as distribuiu entre instituições públicas: a casa residencial é um quartel de polícia, a creche é um centro educacional, o albergue é um posto de ambulância e o outro estabelecimento comercial é um escritório municipal.

Agora Jara, a esposa, está tentando negociar com os bancos da Nicarágua a isenção do pagamento de vários créditos que estavam em seu nome, pois as instituições financeiras não recebem notificação formal dos confiscos e do banimento dos cidadãos e continuam a exigir o pagamento das dívidas acumuladas.

O número de vítimas de confiscos de propriedade é incontável: jornalistas, empresários, padres, comerciantes, camponeses, membros da sociedade civil, ambientalistas e comerciantes estão na longa lista dos confiscados.

“Tudo foi tirado de nós. Minha casa, que pertencia aos meus pais, foi ocupada pela polícia e agora funciona como um centro para jovens. Meus filhos ficaram sem teto e meus pais, que são idosos, sem seu único abrigo”, diz Ángela, jornalista nicaraguense exilada nos Estados Unidos, cuja identidade a IPS concordou em reservar por motivos de segurança.

Ela foi notificada em 2022 para se apresentar na delegacia de polícia mais próxima para “uma entrevista”, mas uma fonte política que ela conhecia lhe disse que era uma armadilha para prendê-la, porque suspeitavam que ela colaborava com os meios de comunicação que faziam reportagens do exílio.

Ela então fugiu uma noite antes da entrevista para a fronteira norte do país, para partir por pequenas estradas para Honduras.

Sua casa, em uma comunidade urbana em Jinotega, a 143 quilômetros de Manágua, foi tomada por assalto policial na madrugada de 25 de julho de 2022. Sua família foi despejada e a casa está desocupada desde então, mas sob vigilância de militantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

Essa prática de confiscos, denunciada como uma violação sistemática dos direitos humanos, foi descrita pelo Grupo de Especialistas em Direitos Humanos da ONU sobre a Nicarágua como uma política estatal deliberada, com impactos devastadores sobre as vítimas e suas famílias.

De acordo com um relatório do Grupo de Especialistas, apresentado em abril ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, mais de 5.000 organizações sem fins lucrativos foram fechadas desde 2018 e suas propriedades foram transferidas para o governo por meio de processos judiciais sem garantias.

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O mesmo aconteceu com a propriedade de mais de 452 pessoas que foram banidas, desnacionalizadas e forçadas ao exílio, pois as autoridades as impediram de retornar à Nicarágua depois de deixar o país por vários motivos temporários, como férias, consultas médicas ou missões de trabalho.

Trata-se de um padrão sistemático que envolve várias instituições estatais, coordenadas pelo Gabinete do Presidente da República, afirmou o Grupo de Especialistas da ONU.

“Esse relatório revela uma arquitetura de repressão estatal que usa o confisco como punição econômica e como instrumento de controle social”, disse Jan-Michael Simon, presidente do Grupo de Especialistas da ONU.

Em sua opinião, o mecanismo afeta não apenas indivíduos, mas redes inteiras de organização social e assistência a populações vulneráveis, como orfanatos, refeitórios, lares para idosos, clínicas de atendimento, escolas, universidades, fazendas e centros de treinamento que pertenciam à Igreja Católica.

Uma investigação do Observatorio Pro Transparencia y Anticorrupción da organização da sociedade civil Hagamos Democracia, publicada em maio de 2024, estimou na época as perdas de 135 propriedades apreendidas em mais de US$ 250 milhões.

Em maio do mesmo ano, Ortega justificou em praça pública que as expropriações “foram legalmente transferidas ao povo para o benefício do povo”.

“Foi transferido ao Estado e recuperou legalmente para o povo nicaraguense as propriedades derivadas de processos criminais por tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, pela prática de crimes contra a segurança e a soberania do cidadão”, disse Ortega.

A jornalista Ángela disse à IPS que as autoridades nunca a notificaram de nenhum processo legal. “Simplesmente chegaram, levaram meus pais e meus filhos para fora e os trancaram. Não houve julgamento, nem ordem judicial. Nada”, disse ela.

Seus dois filhos, uma menina de 15 anos e um menino de nove, foram deixados aos cuidados dos avós, de 74 e 68 anos, sem nada.

Para Gonzalo Carrión, advogado do Coletivo de Direitos Humanos Nicarágua Nunca Más, o padrão de confiscos faz parte de uma estratégia de aniquilação social sem precedentes no país.

“Não se trata apenas de tomar propriedades, mas de apagar as pessoas da vida legal. Eles tiram sua nacionalidade, suas pensões, seus registros civis. É uma forma moderna de exílio permanente”, disse ele à IPS.

De fato, no dia 16 de maio, o casal co-presidencial anunciou uma reforma de dois artigos da Constituição para remover automaticamente a nacionalidade nicaraguense daqueles que obtiveram uma segunda cidadania, o que seria fundamental para expandir os confiscos quando a medida for ratificada pelos deputados sandinistas.

O relatório da ONU identificou 54 funcionários de alto nível como diretamente responsáveis pelos confiscos e outros abusos considerados crimes contra a humanidade, incluindo juízes, promotores, funcionários do registro de terras e a Procuradoria Geral.

Os especialistas documentaram que as decisões são coordenadas a partir da Presidência, chefiada por Rosario Murillo, e que as propriedades confiscadas foram transferidas para instituições estatais ou, também, para indivíduos ligados ao partido governista.

Em muitos casos, o Instituto Nicaraguense de Seguridade Social foi o destinatário de muitas propriedades, incluindo pensões e economias de oponentes.

Em outros, casas ou outros edifícios foram convertidos em escritórios públicos, centros comunitários ou instalações da Polícia Nacional. Essa reutilização de propriedades expropriadas, sem indenização ou devido processo, viola os princípios fundamentais do direito internacional, de acordo com o relatório dos especialistas.

O Grupo de Especialistas observou que esses confiscos não afetaram apenas figuras públicas, mas famílias inteiras. Os idosos foram privados de suas pensões e muitos ficaram sem meios para atender às suas necessidades básicas.

Carrión acrescenta que as pessoas afetadas atualmente não têm vias legais para recorrer. “Na Nicarágua não há instituições independentes. Os registros de propriedade, os tribunais, os escritórios do Ministério Público, todos respondem a uma cadeia de comando político. É um sequestro do estado de direito”, disse ele.

A situação gerou uma nova onda de pobreza no exílio. Muitas vítimas tiveram que recomeçar do zero nos países anfitriões, sem possibilidade de recuperar o que perderam em casa.

Ángela, que agora trabalha como garçonete em um restaurante em Miami, garante que “não me dói ter ido embora, me dói pelo que me tiraram. Não pelo valor econômico, mas pelo que isso significa: eles deixaram meus filhos e meus pais na rua”.

Este texto foi publicado originalmente pela Inter Press Service (IPS)

Na imagem, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega / Reprodução

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