Esterilizações forçadas no Peru: caso abre caminho para a justiça

Esterilizações forçadas no Peru: caso abre caminho para a justiça

Por Mariela Jara

LIMA – Quase 30 anos após o início da política estatal que esterilizou no Peru milhares de mulheres sem seu consentimento, a maioria indígenas em situação de pobreza e da zona rural, abre-se uma nova rota para romper o cerco de impunidade que até hoje impede punir os responsáveis por este crime considerado contra a humanidade.

“Buscamos que se conheça a verdade no caso de Celia Ramos, que se faça justiça e o Estado assuma sua responsabilidade. Mamãe não vai mais voltar, mas tem que haver justiça e uma reparação adequada ao prejuízo que tivemos”, afirmou Marisela Monzón perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no dia 22 de maio, durante seu 176º período ordinário de sessões, realizado na Cidade da Guatemala.

Monzón é filha de Celia Ramos, uma das 18 vítimas fatais do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar aplicado entre 1996 e 2000 no Peru por ordem do então presidente Alberto Fujimori (1990-2000), que exercia seu segundo mandato com controle autoritário dos diferentes poderes do Estado.

Fujimori não cumpriu a totalidade de sua condenação por corrupção e graves violações aos direitos humanos. Saiu da prisão em dezembro de 2023 graças a um questionado indulto humanitário da presidenta Dina Boluarte, desacatando o mandato da Corte IDH de não fazê-lo, dados os delitos contra a humanidade cometidos pelo ex-mandatário. Ele morreu em liberdade 10 meses depois.

“Esperamos a verdade do que aconteceu, que se faça uma investigação de verdade”, pediu Monzón à corte interamericana, presidida pela juíza costarriquenha Nancy Hernández, sobre a morte de sua mãe em 22 de julho de 1997.

A audiência na Cidade da Guatemala foi a primeira na Corte supranacional de justiça de um caso de esterilização forçada ocorrido no Peru.

Celia Ramos faleceu após permanecer 19 dias em coma devido à prática inadequada de ligadura de trompas em um precário estabelecimento público de saúde no povoado La Legua, uma zona rural empobrecida da região norte-costeira de Piura, depois de ser pressionada e coagida pela equipe de saúde. Deixou órfãs de mãe Marisela, de 10 anos, Emilia, de oito, e Marcia, de cinco.

Marisela Monzón, filha de Celia Ramos, uma das 18 vítimas fatais da política de esterilização forçada aplicada no Peru entre 1996-2000, que teve como vítimas mulheres pobres e rurais em meio a um conflito armado interno. Sua morte deixou órfãs de mãe Marisela, então de 10 anos, Emilia de oito e Marcia de cinco. Na imagem durante sua apresentação no dia 22 de maio na audiência do caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Imagem: CDR

Política afetou 300 mil pessoas

O caso dela não é o único. No âmbito da política fujimorista, cerca de 300 mil pessoas, a grande maioria mulheres, foram submetidas a um método anticonceptivo irreversível sem que fosse garantido seu direito ao consentimento livre, prévio e informado.

“Na audiência ficou claro que se eu digo ‘você corre grave perigo se não se submeter ao que estou sugerindo’, é uma forma de coagi-la a aceitar o procedimento médico”, explicou à IPS desde Bogotá Lucía Hernández, assessora legal do escritório regional para América Latina e Caribe do Centro de Direitos Reprodutivos, uma das três organizações que defende o caso.

Em diálogo telefônico, ela detalhou que com Celia Ramos se insistiu de maneira repetida e que fizeram várias visitas ao seu domicílio, apesar de ela ter deixado explícita sua recusa.

“Além disso, minimizaram os riscos em lugar de dar informação completa sobre o que implicava o procedimento médico. Disseram a ela: ‘isso vai ser como arrancar um dente'”, acrescentou.

Hernández deplorou a posição dos representantes do Estado na audiência de 22 de maio.

“Foi negacionista, desrespeitosa e invalidante com as vítimas, buscando defender o indefensável, desconhecendo além disso que em 2003 assinou um Acordo de Solução Amistosa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no qual já reconheceu os direitos violados de Mamérita Mestanza, outra vítima das esterilizações forçadas”, disse.

A Comissão e a Corte conformam o sistema interamericano de defesa dos direitos humanos, como órgãos independentes da Organização de Estados Americanos (OEA).

Representação simbólica em uma mobilização nas ruas de Lima, pela violação do direito das mulheres peruanas a decidir sobre sua reprodução como resultado da aplicação compulsiva do método irreversível das ligaduras de trompas em zonas rurais e empobrecidas do país, com população indígena, durante o governo de Alberto Fujimori. Imagem: Walter Hupiu / IPS

Direito ao consentimento livre violado

Entender a gravidade da política fujimorista implica remontar ao contexto peruano dos anos 90, quando se vivia um conflito armado interno e a militarização interna, que afetou a população mais pobre do país, principalmente centro-andina e quechua-falante.

O Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar buscava reduzir a pobreza no Peru através do controle da natalidade, por isso pôs ênfase na promoção da anticoncepção cirúrgica, mas não dirigindo-a a toda a população feminina, e sim à das zonas rurais, indígenas andinas e amazônicas, populares, caracterizadas pela pobreza.

Nessa realidade, não se garantiu às mulheres seu direito à liberdade pessoal e ao consentimento livre e informado, como destacou em diálogo com a IPS a advogada María Ysabel Cedano da instituição peruana Demus, que também acompanha o caso.

Veja Também:  O retorno em massa e forçado de refugiados ao Afeganistão

“O Ministério Público (promotoria) tem sido bastante relutante em considerar os delitos contra a liberdade pessoal, indolente e discriminador ao não incluir os delitos de coação e sequestro que as mulheres denunciam. Ser perseguidas, assediadas, ameaçadas não é violência para eles”, questionou.

Ela acrescentou que também não é violência dizerem que se não ligassem as trompas não receberiam alimentos nem ajuda social, que iriam para a cadeia por ter mais de cinco filhos ou que poderiam morrer se tivessem mais uma gravidez, como no caso de Celia Ramos.

“Para eles não representa ameaça nem violência porque não levaram em conta o contexto dos fatos”, referiu.

Cedano sustentou que não existiam garantias nos centros de saúde para que as mulheres pudessem exercer o consentimento livre e informado a respeito de uma possível ligadura de trompas.

“Em zonas rurais, a equipe de saúde representava o Estado, mais ainda se estava acompanhada de militares como ocorria nas zonas de conflito armado interno. A vida delas dependia de aceitar o procedimento, não havia garantias para escolher”, sublinhou.

Caminho interno cheio de obstáculos

Internamente, o caso seguiu um caminho cheio de obstáculos para romper a impunidade. Dos ex-ministros da saúde denunciados por esta política, um deles, Alejandro Aguinaga, é congressista do fujimorismo que sempre rejeitou as denúncias.

Após a persistente luta das vítimas, em 2018, depois de 16 anos de investigação do Ministério Público e vários arquivamentos da investigação, o órgão denunciou o ex-presidente Fujimori e os ex-ministros da Saúde Aguinaga, Eduardo Yong e Marino Costa por vários delitos, entre eles lesões graves e lesões graves seguidas de morte.

Em 2024, porém, o caso voltou à estaca zero, pois devia adequar-se ao Novo Código Processual Penal. Desde então, a promotoria responsável já leva nove meses sem que ainda tenha reaberto a investigação.

“Ela nos informou que estão corrigindo algumas irregularidades nos documentos e colocamos que quando formule a denúncia incorpore os delitos contra a liberdade pessoal pela violação do consentimento livre e informado”, precisou Cedano.

Além disso, o Estado não cumpre até agora com outorgar reparações integrais às pessoas inscritas no Registro de Vítimas de Esterilizações Forçadas (Reviesfo): 6.982 mulheres e 189 homens, totalizando 7.171 pessoas reconhecidas como vítimas até fevereiro deste ano.

Isso apesar de o Estado ser parte do Acordo de Solução Amistosa com a CIDH, no qual se compromete a cumprir as reparações estabelecidas. Além disso, uma decisão judicial ordena ao Ministério da Justiça e Direitos Humanos garantir essas reparações e outras medidas em favor das vítimas das esterilizações forçadas.

María Ysabel Cedano, a primeira à esquerda, em uma manifestação na capital peruana, em favor do acesso à justiça e reparação para as vítimas de esterilizações forçadas no país. Cedano é advogada da Demus, uma das três organizações que representa a afetada Celia Ramos, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Imagem: Walter Hupiu / IPS

Busca por responsabilização do Estado

Gisela de León, diretora jurídica do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), organização que também representa as vítimas, afirmou à IPS que se espera que a Corte IDH declare a responsabilidade do Estado peruano pela violação dos direitos de Celia Ramos ao consentimento informado, à vida e à integridade pessoal.

Em declarações desde San José da Costa Rica, onde tem sede a Corte, ela precisou que também estão pedindo que se declare a violação do direito de sua família de acessar a justiça, porque até o momento os fatos estão impunes.

Ela explicou que essas demandas estão dentro do contexto de aplicação da política fujimorista que privou de sua capacidade reprodutiva e do direito de decidir ter filhos milhares de mulheres.

De León manifestou que além disso se busca que a Corte IDH repare o dano causado a Marisela Monzón, que ficou órfã sendo criança junto com suas duas irmãs.

“Para mim é admirável como a busca de justiça foi sendo herdada através dos anos. No início era seu irmão, o tio das filhas, e agora são elas que retomaram o caso”, indicou.

Após os alegatos finais a serem entregues por parte do Estado e das três instituições defensoras do caso, a Corte IDH deve emitir sua sentença. Embora não haja um prazo estabelecido, espera-se que possa ser conhecida no máximo em um ano, ou inclusive eventualmente antes.

Seja quando for, a sentença sobre o caso Celia Ramos terá incidência direta no alcance de justiça para todas as vítimas de esterilizações forçadas pela política fujimorista.

*Imagem em destaque: Ativistas de direitos humanos na Praça San Martín, no centro de Lima, a capital do Peru, durante um protesto contra o indulto a Alberto Fujimori (falecido em setembro de 2024) e em demanda de justiça para as vítimas de esterilizações forçadas, violadas em seus direitos por uma política estatal durante seu mandato. Crédito: Walter Hupiu / IPS

*Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service

Tagged: , , , , , , , , , , , , ,