Haiti à beira do colapso total do Estado

Haiti à beira do colapso total do Estado

NAÇÕES UNIDAS – O Haiti está à beira do colapso total do Estado diante do rápido avanço do controle territorial das gangues e da paralisia institucional na capital, Porto Príncipe. O alerta foi feito nesta quarta-feira (2) pelo secretário-geral adjunto das Nações Unidas para o continente americano, Miroslav Jenča.

“Durante minha visita em janeiro, Porto Príncipe já estava paralisada. Hoje, as gangues fortaleceram seu controle, levando o país a um ponto de não retorno”, afirmou Jenča.

Segundo dados do Escritório Integrado da ONU para o Haiti (Binuh), neste ano já foram registrados, no país de 11,5 milhões de habitantes, 4.026 vítimas de homicídio intencional, incluindo 376 mulheres, 21 meninas e 68 meninos.

Em sessão do Conselho de Segurança da ONU sobre o país caribenho, Jenča reconheceu os esforços haitianos para avançar no processo político, mas ressaltou que a violência das gangues atingiu níveis alarmantes, afetando todas as comunidades da região metropolitana da capital e outras regiões do país.

O número de crimes é 24% maior que no mesmo período de 2024, que já havia mostrado aumento em relação aos anos anteriores. A violência deslocou 1,3 milhão de pessoas de suas casas.

Os grupos armados, que passaram a controlar 80% de Porto Príncipe, cidade com pouco mais de um milhão de habitantes no centro-sul, avançam em direção ao norte.

Por exemplo, no município de La Chapelle, de 40 mil habitantes no departamento de Artibonite (noroeste), um ataque recente deslocou cerca de 9 mil pessoas e destruiu a delegacia local.

Em outro caso, em Mirebalais, uma comuna de 100 mil habitantes no centro do país, grupos armados atacaram a penitenciária e libertaram 529 detentos altamente perigosos, o que demonstra um nível crescente de coordenação tática. Milhares de moradores fugiram de suas casas.

Diante da fragilidade institucional, cada vez mais comunidades estão recorrendo a grupos de autodefesa, o que facilita violações de direitos humanos. Nos últimos três meses, pelo menos 101 pessoas suspeitas de colaborar com gangues foram executadas por esses grupos sem processo judicial.

A violência sexual também disparou. De março a abril, a ONU documentou 364 incidentes, com um total de 378 sobreviventes, em sua maioria mulheres e meninas, vítimas desses ataques usados como instrumentos de terror pelas gangues.

Jenča enfatizou que o avanço político só será possível com melhorias significativas na área de segurança.

O país tem um governo provisório, indicado por um Conselho Presidencial de Transição de nove membros, encarregado de preparar eleições até fevereiro de 2026 para instalar uma nova presidência e um novo governo.

O representante da ONU elogiou o trabalho da Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MMS), liderada pelo Quênia – que enviou centenas de policiais militares, junto com dezenas de efetivos da América Central e do Caribe –, que já completa um ano no país, e lamentou a morte de dois agentes em serviço.

Mas considerou que “o panorama continua sombrio, apesar dos esforços da MMS e da Polícia Nacional” do Haiti, por isso solicitou o aumento das contribuições ao fundo fiduciário que sustenta a Missão.

Na sessão do Conselho também falou a diretora executiva do Escritório da ONU contra Drogas e Crimes, Ghada Waly, que alertou que no Haiti operam cada vez mais empresas de segurança privada e grupos de autodefesa que, em alguns casos, participam de ações extrajudiciais e se aliam às gangues.

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“Todos esses atores estão impulsionando a demanda por armas de fogo e armamentos de uso militar, alimentando os mercados ilícitos de armas e aumentando o risco de que armas legais sejam desviadas para elementos criminosos”, pontuou Waly.

Nas áreas controladas pelas gangues, os serviços públicos já não existem. Em contrapartida, elas consolidam formas de governo paralelas. “Os grupos criminosos estão preenchendo o vazio deixado pela ausência ou insuficiência dos serviços públicos”, acrescentou Waly.

Paralelamente, o comércio legal está paralisado: o terminal portuário da capital parou de funcionar, o preço do arroz subiu mais de 30% desde 2022 e o combustível é vendido a cinco dólares o galão no mercado negro.

Os voos comerciais estão suspensos e, com Porto Príncipe cercada pelos grupos armados, até mesmo as evacuações de pessoal se tornam problemáticas. O escritório do Binuh continua operando em condições cada vez mais precárias.

Na sessão do Conselho, a França exigiu maior participação da ONU em matéria de segurança, incluindo um escritório de apoio logístico para a MMS, aplicação rigorosa de sanções contra quem financia as gangues e fortalecimento das instituições judiciais e penitenciárias haitianas.

Por sua vez, Barbados, em nome da Comunidade do Caribe (Caricom), solicitou que seja dado ao Binuh um mandato mais forte, que inclua apoio às autoridades haitianas na prisão de criminosos perigosos e aplicação do embargo de armamentos.

Nos Estados Unidos, paralelamente, um juiz federal de Nova York, Brian Cogan, bloqueou a medida do governo do presidente Donald Trump para retirar as proteções migratórias dos haitianos que fogem da instabilidade em seu país.

A decisão de Cogan preserva, por enquanto, a extensão do status de proteção temporária (TPS) concedido em 2024 pelo governo anterior (do presidente Joe Biden, 2021-2025) a cerca de 500 mil haitianos que vivem nos Estados Unidos.

O governo Trump busca reverter as designações de TPS e outros programas que permitem a imigrantes de países que enfrentam crises humanitárias viver e trabalhar legalmente no país.

A decisão de Cogan ocorreu apenas quatro dias depois que a secretária de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Kristi Noem, anunciou que a designação do TPS para os haitianos expiraria em 2 de setembro. Pela extensão da administração Biden, a designação deveria expirar em 3 de fevereiro de 2026.

Em outro caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos anulou em maio uma decisão de tribunal inferior e permitiu ao governo revogar a designação de TPS concedida durante a era Biden a cerca de 350 mil venezuelanos.

*Imagem em destaque: Moradores de Porto Príncipe passam por uma venda de rua de alimentos em ambiente de abandono e insalubridade. Os serviços públicos, começando pela segurança, desmoronaram na capital do Haiti e as gangues criminosas se expandem da cidade para o interior do país, cada vez mais à beira do colapso, segundo alertam autoridades das Nações Unidas. Crédito: Juan Pablo Terminello / Acnur

**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service

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