Os pobres da América Latina são mais urbanos e mais vulneráveis

Os pobres da América Latina são mais urbanos e mais vulneráveis

Por Humberto Márquez

CARACAS – A pobreza, embora tenha diminuído na América Latina e no Caribe até agora neste século, mostra uma nova face, a da vulnerabilidade iminente dos pobres, à medida que se tornam menos rurais e mais urbanos, afirma o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em uma nova análise.

“Não só há mais pobreza urbana, mas também uma porcentagem maior da população é altamente vulnerável, ou seja, está muito próxima de cair – e qualquer pequeno choque a fará cair – abaixo da linha da pobreza”, disse à IPS Almudena Fernández, economista-chefe do PNUD para a região.

Assim, “há um segmento da população que permanece acima da linha da pobreza, mas que é empurrado para baixo dela por uma doença ou pela perda da renda familiar”, disse Fernández à IPS de Nova York.

Rosa Meleán, de 47 anos, que foi professora durante 20 anos em Maracaibo, capital de Zulia, no noroeste da Venezuela, rico em petróleo, disse à IPS que “voltar à pobreza é como os escorregadores onde as crianças brincam no pátio da escola: elas continuam subindo, mas com o menor empurrão escorregam de novo”.

Meleán vivenciou isso pessoalmente várias vezes, sustentando seus pais, irmãos e sobrinhos com seu salário, caindo na pobreza quando seu pai da classe trabalhadora morreu, melhorando com um novo emprego, seu salário se liquefez com a hiperinflação (2017-2020), deixando o ensino para buscar outras fontes de renda.

“Você precisa ver o que é ser pobre em Maracaibo, andar a 40 graus Celsius para procurar transporte, sem eletricidade, água racionada e ganhando US$ 25”, o último salário mensal que ela teve como professora antes de se aposentar há cinco anos.

E então veio a pandemia de covid-19, limitando suas novas ocupações como funcionária de escritório ou professora particular. Ela mal se recuperou desse golpe.

“Vivemos em uma época em que os choques são mais comuns – de eventos climáticos extremos, por exemplo – e vemos muita volatilidade econômica e financeira. Somos um mundo muito mais interconectado. Qualquer choque em qualquer lugar do mundo produz um contágio muito direto, eles são o novo normal”, diz Fernández.

Pobreza cai em números

A partir da década de 1950, a América Latina e o Caribe passaram por um rápido processo de urbanização, tornando-se uma das regiões mais urbanizadas do mundo.

Hoje, 82% da população vive em áreas urbanas, em comparação com a média mundial de 58%, de acordo com o PNUD.

Nas últimas duas décadas, a região fez progressos na redução da pobreza extrema e da pobreza em geral. Mesmo com retrocessos desde 2014, registrou sua menor taxa de pobreza em 2022 (26%), com ligeiras reduções estimadas para 2023 (25,2%) e 2024 (25%).

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) indica, em seu relatório mais recente, que a pobreza em 2023 afetará 27,3% da população da região, que é de 663 milhões de pessoas neste ano. Isso significa que “172 milhões de pessoas na região ainda não têm renda suficiente para cobrir suas necessidades básicas (pobreza geral)”.

Entre elas, 66 milhões não podem pagar uma cesta básica de alimentos (pobreza extrema). Mas esses números são até cinco pontos percentuais melhores do que em 2020, o pior ano da pandemia, e 80% do progresso é atribuído aos avanços no Brasil, onde as transferências de recursos para os pobres foram decisivas.

A CEPAL ressalta que a pobreza é maior nas áreas rurais (39,1%) do que nas áreas urbanas (24,6%) e que afeta mais mulheres do que homens em idade produtiva.

Apesar do progresso, “a velocidade da redução da pobreza está começando a diminuir, está diminuindo em um ritmo muito mais lento. Essa é uma primeira preocupação, porque a região está crescendo menos”, disse Fernández.

Ela lembrou que as previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam para um crescimento econômico médio na região de 2% ao ano, “bem abaixo da média mundial”. Assim, será mais difícil continuar reduzindo a pobreza”.

Rosto em transformação

A proporção de pessoas pobres que vivem nas áreas urbanas da região aumentou de 66% em 2000 para 73% em 2022, e a mudança é mais dramática entre as pessoas que vivem em extrema pobreza, com a proporção de extrema pobreza urbana aumentando de 48% para 68% no mesmo período.

Acompanhando essa mudança anualmente, uma análise do PNUD constatou que a pobreza urbana aumentou significativamente durante a crise das commodities de 2014 – e também durante a pandemia – “revelando que a pobreza urbana tem mais probabilidade de aumentar em tempos de recessão econômica do que a pobreza rural”.

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O estudo argumenta que o aumento do custo de vida após a pandemia afetou mais as famílias urbanas, empurrando-as para a pobreza e piorando as condições de vida das que já eram pobres.

As famílias urbanas estão mais ligadas à economia de mercado do que as famílias rurais, o que as torna mais vulneráveis às flutuações econômicas e às mudanças relacionadas ao emprego.

Em contrapartida, os meios de subsistência rurais permitem que as famílias usem estratégias como agricultura de subsistência, realocação de mão de obra, apoio da comunidade ou venda de ativos, como gado, para enfrentar os choques. Essas são opções que os residentes urbanos geralmente não têm.

Outra característica marcante da nova face da pobreza urbana é que ela geralmente se concentra em assentamentos informais nas periferias das cidades, onde a superlotação e o acesso limitado a serviços básicos criam desafios adicionais.

Assim, no caso venezuelano, “as características de pobreza e vulnerabilidade que se destacam na pobreza urbana têm a ver com a precariedade dos serviços públicos e a falta de oportunidades”, disse à IPS Roberto Patiño, fundador da Convive, uma organização de desenvolvimento comunitário, e da Alimenta la Solidaridad, uma organização de assistência social.

Patiño acredita que “o ônus do custo de vida e da inflação é difícil de suportar para as pessoas que vivem na pobreza, tanto em áreas urbanas quanto rurais, embora nas áreas rurais a questão alimentar possa ser menos grave”.

Isso se deve ao fato de que nas áreas rurais “as pessoas têm acesso a pequenas propriedades, a seus próprios cultivos e, além disso, por serem áreas agrícolas, os custos dos alimentos tendem a ser mais baixos do que na cidade, mas as questões de saúde e outros serviços, como transporte, saúde e educação, são muito precários”, destacou o ativista.

Patiño mencionou outra marca da nova face da pobreza, a dos milhões de venezuelanos que migraram para outros países sul-americanos na última década e que “não se recuperaram da pandemia, do ponto de vista econômico, com muitos dos migrantes vivendo em situação precária”.

Buscando soluções

O PNUD argumenta que o enfrentamento da pobreza nas áreas urbanas e rurais requer estratégias diferenciadas, pois as políticas que funcionam nas áreas rurais, como a promoção da produtividade agrícola e a melhoria do acesso a ativos e mercados, não se encaixam bem na situação dos pobres urbanos.

Para eles, o custo da moradia e a inflação dos alimentos são preocupações relevantes.

Fernández disse que “grande parte da política social que foi implementada na região décadas atrás, e que está em andamento, foi projetada tendo em mente a pobreza rural, como ajudar o setor agrícola, como alcançar maior produtividade na agricultura, como atender às necessidades básicas insatisfeitas nas áreas rurais”.

“Agora precisamos avançar em direção a uma política social que se concentre um pouco mais nas necessidades insatisfeitas da pobreza urbana”, disse ela.

Ela acredita que “a urbanização permite outra série de oportunidades. Por exemplo, a maior aglomeração de pessoas permite um acesso mais fácil aos serviços”, embora também possa haver efeitos negativos, como uma inserção mais difícil no mercado de trabalho ou problemas de saúde associados à superlotação.

Entre as soluções, Fernández classificou a necessidade de maior crescimento econômico em primeiro lugar, “porque não conseguiremos reduzir a pobreza se não crescermos”.

Em seguida, o economista classificou a educação, boa em quantidade (cobertura), mas que agora deve se concentrar na qualidade, em segundo lugar, a fim de abordar a transição digital que está em andamento e a necessidade de mais treinamento para os trabalhadores.

Por fim, a necessidade de proteção social – e apesar do crescimento mais lento e do equilíbrio fiscal mais apertado em toda a região, Fernández reconhece – e o investimento em proteger mais as pessoas, com políticas e medidas que incluem, por exemplo, cuidados, empregabilidade, produtividade e seguro.

“Já não basta tirar as pessoas da pobreza; temos que pensar no próximo passo, continuar nesse caminho, para que a população possa se consolidar, com uma classe média estável que tenha mecanismos para que, em momentos de estresse ou choque, seu consumo não caia drasticamente”, disse Fernández.

Em outras palavras, para que as pessoas que têm suas necessidades básicas atendidas não tenham de voltar a cair na pobreza a cada choque econômico ou de saúde.

Este texto foi publicado originalmente pela Inter Press Service (IPS)

A imagem mostra a diferença entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi em São Paulo em 2004 / Johnny Miller/Reprodução

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