Atividades do FSM em Porto Alegre – A Governança Global em questão

Confira as principais discussões do seminário realizado pelo Fórum Social Mundial e entidades em Porto Alegre, nos dias 20 e 21 de janeiro.
POR TATIANA CARLOTTI
Porto Alegre sediou nos dias 20 e 21 de janeiro o Seminário Internacional Democracia, Equidade e Justiça Socioambiental, promovido por coletivos do Fórum Social Mundial (FSM).
Mais de 30 debatedores discutiram o combate ao fascismo, as desigualdades e o racismo socioambiental, justamente, um dia após Donald Trump tomar posse nos Estados Unidos e tirar novamente o país dos Acordos de Paris; e a Oxfam publicar seu relatório mostrando que os 10% mais ricos possuem 40% de toda a riqueza do mundo.
Sediado em Porto Alegre, cidade vítima de terríveis enchentes no ano passado, o seminário ocorre, como de praxe, na semana do Fórum Econômico de Davos. Sua primeira ação foi uma aula pública com o ex-ministro Tarso Genro (PT) e ex-deputada Constituinte Socorro Gomes (PCdoB) que discutiram a crise da democracia.
Os debates giraram em torno de quatro temas principais: a democracia participativa, a crise da governança global, o colapso climático e o trabalho decente. Também foram definidas ações de uma agenda para este ano, incluindo mobilizações em torno da regulamentação das redes sociais e o acompanhamento da votação do Marco Temporal pelo Congresso brasileiro.
ARTIGO 109
A governança global foi tema da segunda mesa do seminário. Com mediação de Marajuara Azambuja e Mauri Cruz, participaram Oded Grajew (Instituto Ethos, Cidades Sustentáveis), o embaixador cubano Adolfo Castellanos, a educadora popular mexicana Rosy Zuñiga (CEAAL) e a jornalista Rita Freire.
Grajew, fundador do Instituto Ethos e um dos coordenadores da Rede Cidades Sustentáveis, trouxe a necessidade de reestruturação das Nações Unidas e do impacto que isso poderia ter na governança global.
Criada após a II Guerra Mundial para ser “o motor e a executora da nova governança global”, a ONU “vem falhando permanentemente e estrondosamente no cumprimento de sua missão. O planeta está aquecendo, a desigualdade aumentando e os conflitos estão cada vez mais ameaçadores”, avaliou.
O Conselho de Segurança da ONU é quem manda, explica Grajew. Ele é composto por 15 países, mas apenas cinco são permanentes e têm poder de veto: Rússia, Inglaterra, França, Estados Unidos e China.
“Cada um tem o direito de vetar qualquer resolução deste Conselho. Nada de concreto acontece ou tem sequência na ONU se não for aprovado por todos eles. Eles podem bloquear qualquer ação que a ONU pretenda fazer”, ressaltou.
“O mais surrealista é que o Conselho tem a missão de preservar a paz no mundo, mas os cinco membros permanentes são os maiores fabricantes de armas no mundo. Não pode funcionar dessa maneira (…) A solução é o artigo 109 da Carta da ONU” que permite, obtida decisão de uma maioria da Assembleia Geral e de mais sete membros do Conselho de Segurança, que seja instaurada uma grande conferência, uma espécie de “Constituinte da ONU” para rever essas regras.
O governo Lula, apontou Grajew, já lançou a ideia de se aplicar o artigo 109 na última reunião da Assembleia Geral. A África do Sul e a Índia aderiram à proposta. Em sua avaliação, a sociedade civil, as redes, os países amigos deveriam fazer uma campanha em prol da aplicação do artigo 109 junto aos seus governos. “É uma tarefa difícil, mas mostra um caminho antes que seja tarde demais”.
AL E CARIBE
“Os conceitos expansionistas hegemônicos estão mais atuais que nunca”, avalia o embaixador cubano Adolfo Castellanos, ao afirmar que “a América Latina e o Caribe estão com sua soberania, estabilidade e segurança ameaçadas”.
Após anunciar a pretensão de mudar o nome do Golfo do México e de ocupar o Canal do Panamá em seu discurso de posse, Trump revogou a decisão de Joe Biden que, no apagar das luzes de seu governo, havia retirado Cuba da lista dos países terroristas.
Segundo Castellanos, “a ampliação da guerra não convencional aplicada contra Cuba diariamente, o negacionismo sobre as mudanças climáticas e o flagrante desprezo pelas Nações Unidas conduzem a um clima de tensão, conflitos e guerras de consequências imprevisíveis”.
Enquanto isso, a “América Latina continua sendo a região mais desigual do planeta. Em 2021, 10% das pessoas com rendimentos mais elevados da região concentravam 66% da riqueza e o 1% mais rico, 33%. “A taxa de pobreza extrema atingiu na nossa região 10,6 % da população. Um total de 172 milhões de pessoas não conseguem satisfazer suas necessidades básicas” e os grupos mais afetados são as mulheres e as crianças.
A mudança, em sua opinião, depende de uma reforma “profunda e abrangente da arquitetura financeira internacional”. E da reformulação das Nações Unidas, incluindo o fortalecimento da Assembleia Geral, “o seu órgão mais democrático”, com a eliminação do anacrônico direito ao veto e a incorporação de novos membros permanentes em seu Conselho.
Destacando que a Doutrina Monroe, o destino manifesto ou a pax americana são os pilares que orientam a projeção dos Estados Unidos no mundo, ele frisou que “para o imperialismo e as oligarquias, será sempre um objetivo dividir as forças populares, minar as conquistas dos governos progressistas e a integração latino-americana”.
Sobre o avanço das tendências extremistas nos últimos tempos, o embaixador foi categórico: “Assistimos à promoção do discurso de ódio, o incentivo aberto à violência, à manipulação da realidade com o uso sistemático das notícias falsas e do arsenal praticamente ilimitado das máquinas de comunicação”.
Frente a este quadro, “é urgente concretizar os propósitos contidas na carta das Nações Unidas e priorizar o respeito pelo princípio da igualdade de direitos entre os Estados à autodeterminação dos povos”, apontou.
FRATURAR O SISTEMA
Segundo a secretária geral do Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL), Rosy Zúñiga, “a decisão de Biden ou do governo de Estados Unidos de tirar Cuba da lista dos países que promovem o terrorismo foi uma proposta tardia. Poderia ter havido mais tempo para fazer as coisas de forma articulada com Cuba e outros países”.
Ela defendeu uma ação mais contundente dos movimentos no México, na América Latina e no mundo contra o bloqueio que asfixia Cuba, destacando a importância de se pensar a democracia do ponto de vista não somente institucional, mas segundo os interesses dos movimentos e dos povos.
“Há uma linha muito forte de movimentos que se articulam na Índia, África, América, que compartilham a necessidade de construirmos uma democracia mais radical, na linha da autodeterminação dos povos e a partir das suas próprias necessidades e apostas.
“Como movimento global temos a possibilidade de fazer algumas fraturas no sistema”, avalia. Ela citou os que sofrem com a ausência de democracia em seus países e a emergência dos fascismos na região, agravada pela ascensão de Trump.
“Não estamos fazendo a ação local. Temos de pensar em diferentes níveis de ação local, regional, continental, global e estabelecer diferentes conexões para fraturarmos esse sistema”, concluiu.
COMUNICAÇÃO EM DISPUTA
A jornalista Rita Freire arrematou o debate da mesa. Ela citou o impacto da ascensão de Trump em pontos sensíveis ao Brasil, como a questão climática e, em particular, a guerra em curso sobre a regulamentação das redes sociais e trouxe uma reflexão sobre a disputa na seara da comunicação.
“Nós vimos ontem, em peso, as grandes corporações reunidas com Trump [durante a posse no dia 20]. Elas representam cinco pibes do Brasil. É um poder muito grande e o que elas buscam é uma intrusão na governança global”, destacou.
Destacando as formas de regular essas mídias, Freire destacou o PL das Fake News, a tentativa de criar uma agência regulatória e a questão em aberto do Marco Civil, “um avanço em 2014 na garantia dos direitos na internet”, considerado modelo no mundo.
“Não é só o Brasil que está na mira dessas corporações, mas todos que estão buscando regular as redes sociais”, apontou, citando o caso da Austrália que já criou uma legislação neste sentido. “Este é um processo de discussão entre os países e o Brasil, mais uma vez, está no centro da disputa”.
Ela prevê, com a ascensão de Trump, um período de “muito ataque ao governo, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à justiça brasileira”.
“A rede social é capaz de mostrar uma mesma situação como uma realidade diferente para cada segmento da população. Elas estão alinhadas a um projeto de extrema direita que depende basicamente de criar uma realidade paralela e alcançar um público muito suscetível à questão do ódio, do conservadorismo, dos valores que considera ameaçados no Brasil”, analisou.
Os movimentos do Sul global, porém, estão buscando se articular. “Nós precisamos ajudar o Brasil a fazer essa regulação. Sem isso, será muito complicado para comunicar para o nosso vizinho que tem alguma coisa de errado no discurso da extrema-direita. A mensagem não vai chegar”.
Em sua avaliação, “toda regulação que cria alguma regra civilizatória entre as pessoas e os países de alguma forma, mesmo frágil, protege direitos, recursos e sistemas mais respeitosos para a humanidade”.
“Quando falamos de uma campanha para reforma da ONU, de uma solidariedade para proteger Cuba, dos movimentos do Sul Global que estão buscando se articular, em tudo isso a gente fala da comunicação. É a comunicação que está em disputa para venceremos essas batalhas”, concluiu.
AGENDA DE AÇÕES
Ao final do evento, na mesa de convergências, foi construída uma agenda coletiva de pautas para este ano que pode ser conferida abaixo. “A sínteses dos debates, as atividades virtuais que foram gravadas e as agendas que nos movem poderão ser acessadas pelo site www.fsm.org.br a partir do final desta semana”, explica o advogado Mauri Cruz, membro do Coletivo Porto Alegre e do Conselho Internacional do FSM, à frente da organização do seminário.
Em artigo divulgado no Brasi de Fato, Cruz convoca “a militância social brasileira a militância social brasileira ocupar seu espaço neste processo, seja nas lutas locais e regionais em defesa de direitos, nas lutas nacionais, como é o caso da regulamentação das big techs ou contra o marco temporal sobre as terras indígenas, seja na reunião dos BRICS que ocorrerá em junho do Rio de Janeiro e na através da Cúpula dos Povos na COP30 em novembro em Belém do Pará”.
Em sua avaliação, “nunca as lutas locais e globais estiveram tão imbricadas e conectadas como nestes tempos que vivemos. Sem a consciência de que precisamos agir local e globalmente, devemos agir nas pautas especificas de forma a conectá-las com as lutas e pautas gerais, as chances de derrotarmos o capitalismo nesta sua etapa perversa serão reduzidas.”
Clique aqui para acompanhar a íntegra do debate e confira abaixo a agenda deste ano.
AGENDAS QUE NOS MOVEM
Coletivo Porto Alegre do FSM
Janeiro/Fevereiro/2025
MUNICIPAL – Mobilização contra a privatização dos serviços de abastecimento de água em Porto Alegre (Privatização do DMAE);
MUNICIPAL – Mobilização contra a privatização da Assistência Social em Porto Alegre. (Extinção da FASC)
MUNICIPAL – Mobilizações contra o PPP do Lixo em Porto Alegre – Em defesa dos direitos das catadores e catadores
NACIONAL – 11 a 13 de Fevereiro – Participação no Conselho de Participação Social
NACIONAL – Mobilizações e acompanhamento das votações no Congresso Brasileiro sobre a regulamentação das redes sociais;
Março/2025
NACIONAL – 8 de Março Unificado – Dia Internacional de Luta das Mulheres
ESTADUAL – Luta pela criação de Protocolo Específico de Abordagem aos Terreiros de Matriz de Povos Africana
NACIONAL – Fórum Inter Conselhos
ESTADUAL – 27 e 28 – Conferência Estadual da Economia Popular e Solidária
MUNICIPAL – Mobilização em defesa da Floresta do Sabará
Abril/2025
MUNICIPAL – Etapas da Conferência Nacional das Cidades
MUNICIPAL – Etapas da Conferência Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
Maio/2025
NACIONAL – 01 de Maio Unificado – Redução da jornada de trabalho sem redução de salários;
MUNICIPAL – Fórum Social das Periferias de Porto Alegre
NACIONAL – 05 a 09 de maio – Conferência Nacional do Meio Ambiente
INTERNACIONAL – 15 de maio – Nakba – Dia Internacional de Lutas pelos direitos do Povo Palestino;
MUNICIPAL – Etapas Municipais da Conferência Estadual LGBTQIAP+
INTERNACIONAL – 19/05 – Fórum Social Mundial das Intersecções – Montreal
Junho/2025
INTERNACIONAL – Reunião dos BRICs – Rio de Janeiro – Participação das organizações e movimentos sociais em defesa de um novo sistema de governança global
ESTADUAL – Conferência Estadual LGBTQIAP+
Julho/2025
INTERNACIONAL – 25 de Julho – Dia Internacional das Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenha
NACIONAL – Conferência Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
ESTADUAL – Conferência Estadual das Cidades
Agosto/2025
NACIONAL – Vigilância e luta contra a PEC 48 do Marco Temporal
NACIONAL – Conferência Nacional de Economia Popular e Solidária
NACIONAL – Conferência Nacional das Cidades
Setembro/2025
NACIONAL – 07/Setembro/2025 – 31º Grito dos Excluídos
Novembro/2025
INTERNACIONAL – 10 a 20 Novembro/2025 – COP30 – Belém do Pará – Participação na Cúpula dos Povos na COP30
NACIONAL – 20 de novembro Unificado – Dia Nacional da Consciência Negra
Dezembro/2025
NACIONAL – 10/12 – Conferência Nacional dos Direitos Humanos
Janeiro/2026
INTERNACIONAL – 4º Fórum Social das Resistências – Porto Alegre
Fevereiro/2026
INTERNACIONAL – Fórum Social Mundial – Benin

FOTO DE CAPA: No debate: Marajuara Azambuja e Mauri Cruz, Adolfo Castellanos e Oded Grajew, Rita Freire e Rosy Zuñiga.

Repórter do Fórum 21 desde 2022, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).