Eleições nos EUA: o império na encruzilhada
Faltam cinco meses para as eleições estadunidenses que impactarão o país e o mundo. Até lá, o atual presidente e seu antecessor na Casa Branca se engalfinharão em uma disputa acirrada – e imprevisível – pelo voto dos indecisos.
Por TATIANA CARLOTTI
De um lado, Donald Trump (77 anos), candidato pelo Partido Republicano, com quatro processos criminais nas costas, recentemente condenado em um deles por fraude fiscal, algo inédito em se tratando de um ex-presidente dos Estados Unidos.
De outro lado, Joe Biden (81 anos), candidato pelo Partido Democrata à reeleição, cujos sistemáticos vetos às propostas de cessar-fogo na Faixa de Gaza, conforme as determinações da poderosa indústria bélica estadunidense, já ceifaram a vida de mais de 35 mil pessoas, entre elas 15,5 mil crianças.
Estes são os “líderes” que a autointitulada “maior democracia do globo”, com cerca de 800 bases militares nos quatro cantos do mundo, tem a oferecer ao mundo neste ano de eleições presidenciais nos Estados Unidos, quando a extrema-direita cresce, capturando as frustrações e as ilusões antissistêmicas das massas precarizadas.
Ainda faltam cinco meses para as eleições estadunidenses, até lá o atual presidente e seu antecessor na Casa Branca se engalfinharão em uma disputa acirrada – e imprevisível – pelo voto dos indecisos.
A condenação de Trump
Ao contrário do Brasil, onde vigora a Lei da Ficha Limpa, sancionada pelo presidente Lula em 2010, nos Estados Unidos, mesmo condenado é possível concorrer ao mais alto cargo do país.
Trump foi condenado no último dia 30, pela Corte Criminal de Nova York, por ter falsificado os registros financeiros de suas empresas, visando ocultar o pagamento de US$ 130 mil a Stormy Daniels, atriz de filmes adultos, durante a corrida presidencial de 2016.
Dez anos antes, os dois tiveram uma relação sexual, pela qual o bilionário prometeu à atriz uma participação em seu programa “Aprendiz”. A promessa nunca foi cumprida. Enganada, ao saber que o bilionário concorreria à presidência, Daniels decidiu vender sua história à imprensa: “Foi horrível, mas eu não disse não”, desabafou.
A peça-chave do julgamento foi o ex-advogado de Trump, Michael Cohen, responsável pela compra do silêncio da atriz, um mês antes das eleições, e pelas manobras fiscais e bancárias para desaparecer com o rastro do dinheiro, durante o julgamento, ele simplesmente relatou o que fez.
Stormy Daniels e Michael Cohen, peças-chave para a condenação de Trump. (Fotos: Daniels por ©Glenn Francis/ Cohen – The Circus – Youtube/Wikipedia).
A defesa de Trump alegou que os US$ 130 mil foram honorários advocatícios pagos a Cohen, mas não foi o que mostraram os documentos analisados pelos juízes, que validaram as 34 acusações de fraude e infração nas leis de financiamento de campanha dos Estados Unidos.
Trump ainda pode recorrer na Justiça, por isso é improvável uma condenação final antes das eleições de novembro. A sentença, inclusive, será definida antes da convenção republicana que o oficializará candidato em julho. Ela pode oscilar entre multas que somariam US$ 25 milhões, prisão (4 anos) ou até mesmo restrições por dez anos de suas atividades empresariais.
Outras acusações
Correm na Justiça três outros processos contra o bilionário.
Um relativo à sua responsabilidade durante a invasão no Capitólio, o Congresso dos EUA, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, para impedir a posse de Biden, vitorioso nas eleições de 2020.
Em abril deste ano, promotores federais entraram na Justiça, acusando Trump de conspirar para fraudar as eleições a partir de mentiras disseminadas sobre o processo eleitoral, e por pressionar autoridades locais contra os resultados das urnas.
Vale lembrar que, em janeiro deste ano, a Suprema Corte daquele país – composta por nove juízes, três indicados por Trump – havia permitido que ele concorresse às eleições, após analisar um pedido de inviabilidade eleitoral com base na 14ª Emenda que proíbe que pessoas envolvidas com insurreições ocupem cargos federais nos Estados Unidos.
Outro processo, cuja data de julgamento até agora não foi definida, acusa o candidato republicano de conspirar criminalmente para reverter os resultados eleitorais na Geórgia, estado que concedeu vitória a Joe Biden e onde Trump perdeu por uma pequena margem de votos.
Em janeiro de 2021, o Washington Post vazou um telefonema do bilionário pedindo à então principal autoridade eleitoral do estado, o republicano Brad Raffensperger, para “encontrar” 11.780 votos em seu favor, o que poderia ter anulado o resultado no estado e virado o jogo eleitoral. O pedido foi recusado.
Um terceiro processo contra Trump, cujo julgamento programado para maio acabou sendo adiado, é sobre a manipulação de documentos confidenciais levados da Casa Branca para a sua casa na Florida, logo após ele deixar a presidência. Neste caso, ele é acusado de obstrução do FBI e da polícia federal que tentaram reaver esses arquivos, e de prestar declarações falsas.
Aristocracia financeira
Na última terça-feira (12), menos de quinze dias após a condenação de Trump, o Centro AP-NORC de Pesquisa de Assuntos Públicos divulgou uma sondagem mostrando que a opinião pública permanece estável em comparação com os índices divulgados antes do julgamento: 40% permanecem favoráveis a Trump contra 56% que manifestaram uma opinião negativa sobre ele. Em fevereiro, eram 38% favoráveis ante 58% contrários.
“O público está muito dividido se a condenação por um júri de Manhatan foi motivada pela política”, diz o texto, ao salientar que “cerca de metade dos independentes não tem opinião e dizem que não aprovam e nem desaprovam a condenação”.
Para convencê-los, além da militância aguerrida e barulhenta, que abraçou a tese de “perseguição política”, Trump conta com o dinheiro, aliás, muito dinheiro, de seus apoiadores. 24 horas após a condenação, sua campanha anunciou o recebimento de US$ 53 milhões.
Em artigo publicado em seu blog e traduzido pelo site A Terra é Redonda, o historiador Adam Tooze, professor na Columbia University, traz uma análise abrangente sobre quem são esses doadores “na ordem dos milhões de dólares”.
Miriam Adelson e Steve Schwarzman, entre os super-ricos apoiadores de Donald Trump. (Fotos: Adelson por Gage Skidmore/ Schwarzman por Remy Steinegger -World Economic Forum).
Não por acaso, “alguns dos mais importantes apoios financeiros de Donald Trump provêm dos fundos de hedge [empresas que administram ativos e investimentos de seus acionistas] e dos grupos de capital privado, “que são muito menos limitados pelas convenções educadas da América corporativa do que os grandes bancos”, aponta Tooze.
“Todos os atores desta lista já possuem uma riqueza gigantesca e os donativos políticos constituem uma pequena fração de suas despesas”, complementa. Entre eles estão Miriam Adelson, proprietária da rede de cassinos Las Vegas Sands; Robert Bigelow dono da rede hoteleira Budget Suites of America; David Sacks, investidor de empresas da Silicon Valley e Steve Schwarzman, proprietário da Blackstone Group.
“Lógica de reafirmação do absurdo”
“A política normal não está mais funcionando nos Estados Unidos. Nós passamos dos limites. Uma condenação dessas deveria ser suficiente para as pessoas se mobilizarem, mas parece que o impacto é pequeno”, afirma o historiador Rafael Ioris, durante sua participação no Diálogos INEU, um programa de entrevistas do INCT-INEU, rede de acadêmicos e pesquisadores especialistas em Estados Unidos.
Professor da Universidade de Denver, Ioris vem acompanhando “in loco” o processo eleitoral nos Estados Unidos, com ceticismo em relação ao impacto nas eleições dessa condenação e demais processos. “Trump provavelmente vai perder muito tempo indo para diferentes cortes, em diferentes decisões judiciais, mas ele saberá virar isso a seu favor, chamando os seus apoiadores e a imprensa”.
Também parece fora de cogitação uma troca de candidatos até a convenção partidária republicana, em julho. “A base republicana é trumpista. 90% a 80% das pessoas vão votar no Partido Republicano por ser o Trump. É disso que estamos falando. Um candidato tão errático, tão anormal, tão aberrante e é exatamente essa a lógica: a lógica da reafirmação do absurdo”, analisa.
“´Mas o cara foi condenado. É exatamente por isso que vou votar, porque ele é vítima´. Essa é a história. Votam porque dizem que ele é antissistema, é diferente, é o ´não normal´. Esse é o motivo da empolgação, do ponto de vista do ativismo daqueles que estão se mobilizando para fazer campanha”, complementa.
Apoiadores de Trump durante a invasão no Capitólio em 6 de Janeiro de 2021. (Foto: Tyler Merbler / Wikipedia).
Sociedade polarizada
Incitando as bandeiras reacionárias da sociedade estadunidense, Trump apostou, enquanto presidente, na indicação de juízes “de fato, conservadores moralmente, em termos de valores reacionários”, que agora vêm tentando “reconstruir o passado do ponto de vista jurídico”, conta Ioris.
Um dos exemplos cabais desse movimento foi a anulação da jurisdição federal de 1973 que permitia o aborto nos Estados Unidos. Em junho de 2022, a Suprema Corte permitiu a proibição do aborto no estado do Mississipi, transferindo às cortes estaduais a prerrogativa de determinar se as mulheres podem ou não ter autonomia sobre seus próprios corpos.
“Um retrocesso que pode se aprofundar ainda mais”, analisa Ioris, destacando que a vitória de Trump seria “a consagração” desse processo reacionário “que já está ocorrendo em diferentes áreas e em diferentes estados” daquele país.
Mas, como a sociedade estadunidense encontra-se fortemente polarizada, o que é atração por um lado pode ser o motivo de afastamento por outro. “Você pode ter suficientemente preocupação do outro lado da sociedade, que está profundamente dividida” e isso contribuir para a reeleição de Joe Biden.
Não se trata, portanto, de uma empolgação genuína pelo atual chefe da Casa Branca, mas de um voto contra Trump, motivado pelo medo da perda desses direitos. “Biden entra nesta reeleição com dois apelos: ser a última barreira para a vitória de Trump e defender a institucionalidade democrática e a racionalidade no governo”, destaca.
Segmentos específicos
Apertada e imprevisível, a eleição será ganha nos estados e em setores muito específicos da sociedade estadunidense, explica Ioris. Ele cita, por exemplo, a importância do voto das mulheres brancas dos subúrbios das grandes cidades, como Detroit, Filadelfia, Wisconsin, que podem até gostar de Trump, mas vão votar em defesa dos seus direitos reprodutivos.
Ele também destaca o voto afro-americano “que tende majoritariamente a ser democrata”, e o voto dos latinos, “muito importante em Nevada, no Arizona e talvez na Georgia”.
“Apesar de não ser um voto homogêneo, os eleitores latinos compartilham os valores da família, a moral religiosa, o ´american way of life´ do empreendedorismo”, mobilizados pela campanha republicana.
“Trump soube trabalhar bem a ideia de que existe o bom e o mal imigrante. Você que está aqui e tem uma pequena empresa, que trabalha e vai à Igreja, que ajuda a sua família, você é o bom imigrante. Mas o cara que está lá tentando cruzar a fronteira, sem documentação, é diferente de você. Ele é o mal imigrante”, exemplifica.
Outro segmento com peso nestas eleições é a juventude estadunidense. Reportagem do jornal USA Today, em abril deste ano, apontava um apoio de 45% a Biden entre o eleitorado com menos de 30 anos. No mesmo mês, durante a corrida presidencial de 2020, o apoio desse contingente batia os 60%.
Genocídio em Gaza
Acampamento de Solidariedade de Gaza na Universidade de Columbia (Foto: Abbad Diraneyya – Wikipedia).
Um dos motivos da não adesão da juventude ao democrata é atribuído ao genocídio em Gaza, contra o qual se levantou uma forte onda de protestos nas universidades estadunidenses. Um movimento “que resgatou o protagonismo político da juventude universitária nos EUA”, avalia e acompanha de perto a professora Michelle de Sá e Silva, que leciona na Universidade de Oklahoma.
“O conflito entre Israel e Palestina poderá custar a reeleição de Biden”, na medida em que seu governo faz um movimento de “morde e assopra”: oferece ajuda humanitária, mas continua enviando militares, armamento e munição para Israel, aponta Sá e Silva, em sua participação em outro episódio dos Diálogos INEU, focado no impacto eleitoral dessas manifestações.
“A principal razão de a imprensa ter dado tanto destaque aos protestos estudantis tem a ver com a importância política eleitoral dos jovens para a reeleição de Biden. O Partido Democrata depende muito do voto jovem e de que eles saiam de casa para votar, mas muitos jovens progressistas não vão votar ou buscarão uma terceira via, se ela se viabilizar”, avalia.
Entre os democratas, “há uma parte apoiadora do conflito e outra mais à esquerda e mais crítica, que vem apoiando os protestos estudantis e criticando a administração Biden por dentro”. Já os republicanos “estão fechados em seu apoio à Israel”, destaca Sá e Silva, ao comentar a forte aliança entre Trump e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu.
“Há uma aliança da direita que é transnacional. Netanyahu é parte dela, os republicanos também”, complementa.
Foto em destaque: Trump por Gage Skidmore/ Biden por Michael Stokes – Wikipedia.
Repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).