A violência nos reinos da paz

A violência nos reinos da paz

Os países nórdicos da Europa, conhecidos por suas políticas progressistas e altos índices de igualdade de gênero, enfrentam um paradoxo preocupante: taxas elevadas de violência, especialmente contra as mulheres. Este chamado “paradoxo nórdico” revela uma complexidade que desafia a imagem utópica dessas nações. Os últimos tempos têm trazido evidências de que a Escandinávia perdeu sua inocência e, cada vez mais, se alinha aos países do resto do mundo, onde o crime e as ameaças à tranquilidade e à vida passaram a fazer parte do cotidiano.

Na Suécia, outrora tranquila, a guerra entre gangues criminosas provoca tiroteios cada vez mais frequentes, a ponto de a imprensa local definir esse estado de violência como o novo normal, que não pode mais ser ignorado. Existem hoje no país pelo menos quarenta quadrilhas organizadas dedicadas ao tráfico de drogas, violência e extorsão. No ano passado, uma poderosa gangue chamada Foxtrot dividiu-se em duas, o que provocou novo aumento no negócio do crime. Segundo um relatório policial datado de fevereiro de 2024, sessenta e dois mil criminosos estão ativos ou vinculados a quadrilhas organizadas no país. Pelas estatísticas do relatório, 95% são homens e 88% cidadãos suecos.

As gangues estão espalhadas pelo país, não apenas concentradas em grandes cidades como Estocolmo, Gotemburgo e Malmö, mas também nas cidades médias de todo o país. Como costuma acontecer na guerra de gangues das favelas brasileiras, há vítimas colaterais dos conflitos: em abril, um homem inocente tornou-se símbolo dessa escalada, vítima de uma bala perdida em um tiroteio, na frente de seu filho de 12 anos, quando ia a caminho da piscina no bairro de Skärholmen, em Estocolmo.

A crise de segurança na Suécia coincide com o desmonte do Estado de bem-estar social, construído depois da guerra e que era apontado como modelo. Foi obra da chamada virada neoliberal: nos anos 1980, ocorreu uma mudança política em direção a políticas liberais, incluindo a desregulamentação do setor financeiro. Foram também adotadas medidas de austeridade, com cortes significativos nos gastos públicos que impactaram as políticas sociais.

Ficou claro para os suecos que a onda de violência deve ser formalmente abordada. O Ministro da Justiça sueco, Gunnar Strömmer, disse que “os políticos na Dinamarca, da esquerda à direita, que disseram que a Suécia há muito tempo negligencia o crime e a segregação, estavam certos”. Vindo de um líder político, admitir isso publicamente revela a mudança de mentalidade que acontece na Suécia, onde o estado adotou uma abordagem conservadora em termos de políticas públicas.

A parte mais preocupante dessa realidade são os chamados “crianças-soldados”, que estão sendo recrutados para cometer crimes em países vizinhos, levando a uma onda de violência em Copenhague. Desde abril deste ano, 25 suecos foram presos na capital da Dinamarca, acusados de crimes graves. Segundo as polícias dos dois países, os incidentes envolvendo adolescentes suecos na Dinamarca estão conectados a conflitos entre gangues dinamarquesas e suecas, envolvendo drogas e dinheiro proveniente de assaltos. Como parte da escalada, jovens são abordados nas mídias sociais e em chats criptografados, antes de serem enviados em missões pagas do outro lado do estreito de Øresund – incluindo cometer crimes violentos e assassinatos, recebendo em pagamento até 200.000 coroas dinamarquesas (equivalentes a 27 mil euros).

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Igualdade e Violência Sexual

A Dinamarca, frequentemente citada por sua igualdade de gênero, enfrenta uma alta incidência de violência sexual. Em 2017, 24 mil mulheres foram vítimas de estupro, um número considerado alarmante num país com uma população de aproximadamente 5,8 milhões. Muitas delas, na denúncia, relataram experiências traumáticas.

Na Finlândia, estima-se que cerca de 50 mil mulheres sejam vítimas de violência sexual anualmente, incluindo estupro. O problema é agravado pela baixa taxa de denúncias e condenações, refletindo falhas nos sistemas de justiça e a persistência de mitos e estereótipos sem fundamento.

A Suécia e a Finlândia apresentam taxas altas de violência por parceiro íntimo. Na Suécia, 28% das mulheres relataram ter sofrido esse tipo de violência, enquanto na Finlândia a estatística é de 30%, ambos os países acima da média da União Europeia, que é 22%. São números indicando que, apesar dos avanços em igualdade de gênero, a violência contra as mulheres permanece um problema.

Violência contra migrantes

Há também preocupação com o aumento da violência contra migrantes, que tem crescido com o aumento do fluxo migratório, principalmente depois da crise dos refugiados de 2015, quando mais de um milhão de refugiados da África e Oriente Médio chegaram à Europa.

A Suécia, um dos países que mais recebeu refugiados proporcionalmente à sua população, assistiu ao aumento dos crimes de ódio. Em 2015, foram registrados 6.270 crimes de ódio, representando um aumento de 14% em relação ao ano anterior. Houve ataques físicos, ameaças e discriminação contra pessoas percebidas como estrangeiras ou de origem imigrante. Um desses incidentes ocorreu em Estocolmo, quando um grupo de homens mascarados distribuiu panfletos com mensagens ameaçadoras direcionadas a “crianças de rua norte-africanas” e atacou pessoas com “aparência de estrangeiro” na movimentada praça Sergel.

São atos de violência perpetrados por grupos de direita e neonazistas. Na Suécia, o “Movimento de Resistência Sueca”, neonazista, divulgou um comunicado assumindo a responsabilidade por ataques contra imigrantes. Justificou essas ações como uma forma de “castigar” os imigrantes que estariam a causar problemas. Na Finlândia, surgiu um grupo neonazista que se denomina “Os Soldados de Odin”.

A violência contra migrantes e refugiados nos países escandinavos é frequentemente perpetrada por grupos extremistas de direita e neonazistas. Embora não seja diretamente violência física, alguns países escandinavos, como a Dinamarca, adotaram políticas migratórias extremamente restritivas que podem ser consideradas uma forma de violência institucional contra migrantes e refugiados. A Dinamarca implementou medidas como o confisco de bens de valor dos refugiados que chegam ao país e a restrição do acesso a ajudas sociais.

*Imagem em destaque: stophate.uk

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