O povo que o mundo esqueceu
A história dos ciganos é uma saga de violência, fuga e perseguições. A União Europeia, nos seus fundamentos, não reconheceu a sua existência e muito menos os seus direitos. Deixou-os de fora do estado de bem-estar social, sem emprego, saúde, educação e liberdade de circulação.
Oitenta por cento da população cigana da Europa vive abaixo do limiar da pobreza, é o que revela um relatório da Agência dos Direitos Fundamentais (FRA, na sigla em inglês). O documento será entregue esta semana à União Europeia, que estabeleceu o prazo de até 2030 para tirar os ciganos europeus da miséria em que vivem em maior ou menor grau em todos os países do continente.
Os ciganos têm uma origem e uma história misteriosas. Parecem ter vindo da Índia mas alguns estudiosos dizem que não. Teriam vindo da antiga região da Caldéia, no território onde hoje se encontra o Iraque. É certo, no entanto, que há novecentos anos começaram a chegar à Europa percorrendo o caminho dos Balcãs, passando pela Bulgária. Hoje estão espalhados pelos vários países do Continente europeu e também pelo mundo. São quase invisíveis, perambulam pelas ruas das grandes cidades, as mulheres com seus vestidos longos abordam os turistas e oferecem a leitura do destino e a revelação do futuro. Marginalizados e alvos de fortes preconceitos, procuram a subsistência da forma que lhes for possível, nem sempre por meios absolutamente legais. São também chamados nas diversas regiões do mundo de romi, boêmios, gitanos, romnichals, calons, calés ou calós. O termo cigano é considerado por alguns deles como um insulto. Sua população na Europa é estimada em 11 milhões de pessoas, o que representa um número superior à população de Portugal ou o dobro dos habitantes da Noruega, por exemplo. São o maior grupo entre as diversas minorias existentes.
Na França
No governo de Nicolas Sarkozy começaram a ser expulsos da França. O pretexto foram os protestos às vezes violentos que fizeram depois da morte pela polícia de um jovem cigano que não parou durante uma operação policial na estrada. Sob o protesto dos movimentos e partidos de esquerda, embora com o apoio de 79% da população, Sarkozy justificou a expulsão como uma ação de reintegração dos ciganos em seus países de origem. Um eufemismo. Como incentivo à saída da França, o governo ofereceu 300 euros a cada adulto e 100 euros a cada criança. Muitos aceitaram e depois retornaram ao país.
Na Alemanha
Considerados como uma raça inferior pela Alemanha nazista, seu destino pode ser de alguma forma comparado ao dos judeus. Fichados pela polícia, eram obrigados a usar no peito, como distintivo, um triângulo marrom. Foram perseguidos e mortos. Aproximadamente 500 mil foram assassinados nos campos de concentração do regime. Toda a sua história é uma sucessão de perseguições, abusos e de rejeição dos povos que lhes negam a integração.
Na Alemanha, ainda hoje lutam para serem aceitos numa sociedade que os discrimina. Num espaço entre o Parlamento e o Portão de Brandemburgo, em Berlim, foi erguido em 2012 o Memorial aos Sinti e Roma da Europa Trucidados sob o Nacional-Socialismo. “Sinti” é o termo usado para designar os membros de um dos três troncos em que se divide o povo cigano. Os outros são os “romi” e os “caló”. A língua falada pelos sinti é um dialeto da língua romani cujo vocabulário tem grande influência do alemão.
Na cerimônia de inauguração do memorial, a chanceler Angela Merkel disse que “cabe à Alemanha e à Europa dar apoio ao povo roma, onde quer que ele viva, não importa qual seja o país”.
Na Itália
Em 2018 o neofascista Matteo Salvini, enquanto Ministro do Interior, ordenou o recenseamento da população cigana para providenciar sua expulsão do território italiano. Segundo declarou, pretendia “verificar a presença de campos ilegais para elaborar um plano de expulsão”.
Calcula-se que a Itália tenha em torno de 180 mil roma e sinti, uma das menores populações ciganas da Europa. Metade deles possui cidadania italiana e tem empregos nas diversas cidades e regiões do país.
A Associazione 21 Iuglio, de defesa dos direitos dos ciganos, denunciou uma manobra de Salvini, pois seu Ministério fez o levantamento de todos os campos de refugiados, ciganos ou não, com o objetivo de expulsá-los a todos. Sabe-se da obsessão dos partidos da extrema direita europeia, entre eles a Liga, de Salvini, como também o Fratelli d’Italia, da Primeira Ministra Giorgia Meloni, em relação aos imigrantes e refugiados.
Na Hungria
“Eles estão a reproduzir-se como ratos, como parasitas”, foi o comentário mais replicado nas redes sociais húngaras em 2019, referindo-se aos ciganos. A Hungria é governada hoje pelo mais radical líder neofascista da Europa, Viktor Orbán, amigo do peito de Jair Bolsonaro e seus filhos. Ele conseguiu implantar uma ditadura de fato no país, fazendo uso e pretexto da epidemia do coronavírus.
Estimulado pelo governo, o racismo é crescente na Hungria e multiplicam-se os crimes relacionados ao preconceito. Há uma espiral de ataques violentos contra as comunidades ciganas. Há pouco, grupos neofascistas mataram seis pessoas dessa etnia, feriram vários, incendiaram casas e espalharam o terror em Budapeste.
A população cigana representa em torno de 10 por cento dos dez milhões de habitantes da Hungria. O governo Orbán tem aumentado a segregação, a começar das escolas primárias. Nevsija Durmish, responsável pelo programa de húngaro da Fundação de Educação Romani, diz que a segregação manifesta-se de diversas formas. “Desde a colocação desproporcionada de alunos ciganos em escolas especiais para crianças deficientes, passando por aquelas destinadas apenas a ciganos, até à separação de turmas específicas de ciganos nas escolas comuns”.
A história dos ciganos é uma saga de violência, fuga e perseguições. A União Europeia, nos seus fundamentos, não reconheceu a sua existência e muito menos os seus direitos. Deixou-os de fora do estado de bem-estar social, sem emprego, saúde, educação e liberdade de circulação.
Poeta, articulista, jornalista e publicitário. Traballhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).