Políticas Habitacionais Comparadas: Cuba versus Brasil

Políticas Habitacionais Comparadas: Cuba versus Brasil

Estudo mostra como a abertura do turismo internacional em Cuba levou à formação de uma economia dual ou bi monetária, com profundas implicações estruturais.

POR FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA

Aline Marcondes Miglioli publicou em livro, Casa à Venda: Turismo, Mercado de Imóveis e Transformação Socioespacial em Havana (Marília: Lutas Anticapital; 2024), sua tese de doutoramento pelo IE-UNICAMP. Explica como a abertura do turismo internacional em Cuba, especialmente após a crise do “Período Especial” nos anos 1990, com o colapso da URSS, levou à formação de uma economia dual ou bi monetária, com profundas implicações estruturais.

A isso se somou uma dolarização parcial da economia. Em certos momentos, gerou pressões inflacionárias, exclusão social e ameaças à estabilidade macroeconômica, embora não tenha se configurado uma hiperinflação clássica nos moldes latino-americanos.

Esse processo teve suas fases principais bem demarcadas. A emergência de um sistema bi monetário em Cuba ocorreu após o fim do apoio soviético, quando o Estado cubano enfrentou um colapso econômico dramático. Para sobreviver legalizou o uso do dólar (USD), em 1993, e criou o Peso Cubano Conversível (CUC), em 1994, atrelado ao dólar, voltado para operações turísticas e importações. Além disso, manteve o Peso Cubano (CUP) para salários públicos, bens subsidiados e comércio interno.

Resultado: surgiu uma economia dual, onde o setor dolarizado (turismo, remessas, consumo premium) gerava divisas e o setor em CUP (estatal e popular) acumulava escassez, sub-remuneração e informalidade. Isso gerou uma divisão social informal entre quem tinha acesso ao mercado em moeda forte (turismo, remessas, trabalho autônomo regulado) e quem vivia apenas do setor estatal e moeda nacional desvalorizada.

A partir dos anos 2000, com a legalização progressiva do trabalho autônomo (cuentapropistas) e a autorização para aluguel de cômodos ou residências para turistas, houve valorização imobiliária localizada em Havana, Trinidad e Varadero. Também foi o período de emergência de pequenos empreendedores urbanos, ligados ao turismo. Desse processo emergiu uma “burguesia de serviços” informalizada e vinculada a remessas vinda dos emigrantes cubanos no exterior.

As residências passaram a ser parcialmente convertidas em ativos geradores de renda com o uso comercial parcial delas em regiões turísticas. Esse movimento tensionou a lógica socialista original da função social do uso da moradia.

Nos anos 2010, e especialmente após 2020, com a crise agravada pela pandemia e pelo endurecimento do embargo norte-americano, Cuba revogou o CUC (2021), buscando unificar o sistema monetário em torno do CUP. Viu o dólar (e depois o euro e outras moedas) reaparecer com força no mercado paralelo.

Enfrentou uma forte desvalorização do CUP, tanto no câmbio oficial quanto no paralelo. Passou a usar “lojas em moeda estrangeira” (MLC) para bens importados, reforçando a segregação monetária.

Isso criou uma situação de inflação acelerada, mas não de hiperinflação estrutural como nos casos extremos da América Latina, por exemplo, Argentina nos anos 1980 ou Venezuela recentemente. Ainda assim, os impactos sociais foram graves com perda de poder de compra de quem vive de salários públicos e aumento da desigualdade entre famílias com acesso a divisas e aquelas sem. Cresceu a dolarização informal da economia urbana, sobretudo nas áreas turísticas.

Esse processo gerou tensões ideológicas e funcionais no modelo socialista cubano por causa das contradições estruturais. A moradia voltou a adquirir caráter semi-mercantil em determinadas áreas.

O Estado passou a tolerar a acumulação privada moderada, mas sem mecanismos fiscais redistributivos eficazes. O trabalho autônomo e o turismo criaram ilhas de prosperidade em meio à precariedade estatal.

De acordo com a Aline Miglioli, a abertura do turismo internacional em Cuba, com o uso comercial de moradias e o fortalecimento do trabalho autônomo, produziu uma economia fragmentada entre setores dolarizados e peso-nacionais. Está sofrendo com desigualdade emergente, inflação alta e tensões ideológicas.

Embora não haja hiperinflação nos moldes clássicos, a perda de controle sobre o sistema monetário e a valorização seletiva de ativos urbanos (como imóveis turísticos) põem em risco o projeto original de justiça espacial e igualdade econômica no país.

Em comparação com o modelo brasileiro, deve ser ressaltado desde logo: banco (inclusive público) empresta dinheiro de terceiros e não pode o perder por não avaliar o risco do cliente demandante. Caso contrário, o Banco Central retira sua autorização para atuar legalmente.

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Continuar com a denúncia da desigualdade ou pobreza relativa, no capitalismo brasileiro, é estéril  em vez de defender a política habitacional da Caixa como o maior instrumento de diminuição da pobreza absoluta. Permite o acesso à própria moradia, a maior riqueza das famílias, ou seja, é um instrumento de distribuição de riqueza. Todas a almejam, inclusive nos socialismos realmente existentes.

A Caixa Econômica Federal, especialmente em seu papel de banco público de fomento habitacional, é uma das maiores ferramentas efetivas de combate à pobreza absoluta no Brasil contemporâneo. Não se trata de um simples banco comercial: ela opera com lógica de política pública, gerindo fundos como o FGTS, articulando programas como o Minha Casa Minha Vida (MCMV) e o PAR – Programa de Arrendamento Residencial, um leasing imobiliário por 15 anos.

O mérito do modelo brasileiro está em: permitir a famílias de baixa renda o acesso à moradia própria com crédito em longo prazo e juros subsidiados; ampliar o estoque habitacional formal com titulação; atuar como instrumento anticíclico, movimentando o setor da construção civil com geração de emprego e dinamismo local; viabilizar um acesso patrimonial intergeracional, oferecendo segurança e estabilidade às famílias historicamente excluídas do mercado formal de terras.

Essa política habitacional tem efeito redistributivo. A crítica desinformada ao ignorar esse papel estrutural da Caixa incorre em erro analítico e político.

Um banco, público ou privado, precisa avaliar o risco de crédito com seriedade. O capital emprestado é, sim, de terceiros, seja do FGTS, do Tesouro ou de captação de mercado. Portanto, a concessão de crédito habitacional envolve critérios técnicos legítimos para evitar inadimplência, insolvência e perdas sistêmicas.

O Banco Central, enquanto regulador, exige capital mínimo, provisionamento prudencial e indicadores de risco de crédito. A Caixa, como banco público, tem um dever duplo: operar com responsabilidade fiscal e técnica e cumprir o mandato constitucional de garantir o direito à moradia.

A conjugação dessas duas funções — eficiência técnica e função social — dá complexidade (e potência) à política habitacional brasileira. Essa não é uma contradição a ser denunciada, mas sim um desafio institucional a ser bem gerido.

Repetir uma denúncia genérica sobre a desigualdade não transforma nada, especialmente quando ela ignora os instrumentos concretos já atuantes para a mitigar. A crítica à financeirização não precisa ser antagônica à política habitacional via crédito público.

Uma crítica qualificada proporia não acabar com o crédito público, mas sim impedir sua captura por lógicas de mercado especulativas. Elas transformam moradia em ativo financeiro em vez de bem de uso.

Não se trata de negar a Caixa, mas defender mais regulação, mais função social da propriedade e maior presença do Estado nas regiões onde o mercado não atua espontaneamente. Não se deve criminalizar o sistema financeiro, mas impedir só ele determinar onde, como e para quem se constrói moradia. Essa deve ser uma decisão pública e social, não de rentabilidade.

Aline Miglioli mostra: o desejo pela moradia própria é universal, inclusive nos socialismos realmente existentes. Em Cuba, Vietnã, URSS, China e outros modelos socialistas, o tema da moradia nunca deixou de ser central, mesmo quando seu regime jurídico era diferente (uso e não propriedade plena). A experiência mostra a propriedade familiar da moradia tende a ser um anseio legítimo e trans histórico.

Não há contradição entre reconhecer o papel estrutural da Caixa e da política habitacional como redistributiva — e, ao mesmo tempo, buscar aperfeiçoamentos e limites à sua instrumentalização por lógicas financeiras. Se não forem reguladas, ampliam desigualdades de outra natureza: territorial, especulativa, urbana.

A crítica relevante hoje não é a denúncia vazia, mas a crítica propositiva, institucional. Deve reconhecer o já conquistado para avançar.

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