A capital mais sustentável do Brasil valoriza seu lixo

A capital mais sustentável do Brasil valoriza seu lixo

Entrada da horta comunitária de Ribeirão, um bairro de Florianópolis, capital do estado brasileiro de Santa Catarina, no sul do país. Na cidade, há mais de 150 hortas como essa, que funcionam como destino final do adubo produzido com o lixo orgânico. A compostagem é uma das formas de aproveitar os resíduos, para promover a agricultura urbana e reduzir o envio de lixo para aterros sanitários na capital mais sustentável do país. (Imagem: Mario Osava / IPS)

POR MÁRIO OSAVA

FLORIANÓPOLIS, Brasil – Conviver com os vizinhos, conhecê-los e conversar com eles é o que Lucila Neves mais gosta na horta comunitária do Portal de Ribeirão, um bairro no sul de Florianópolis, considerada a capital mais sustentável das 27 capitais dos estados brasileiros.

A empresária de embalagens biodegradáveis escolheu viver na capital do estado de Santa Catarina, no sul do país, para onde se mudou vinda de Ribeirão Preto, uma cidade localizada a 950 quilômetros ao norte. Ela é uma das pessoas que cuidam voluntariamente da imensa variedade de hortaliças, plantas medicinais e árvores frutíferas plantadas em cerca de 1.000 metros quadrados.

Os moradores do bairro aceitaram de bom grado o plantio iniciado há 15 meses, porque saneou a área onde antes uma empresa privada fazia compostagem de lixo orgânico para a prefeitura, sem os cuidados necessários.

“Defendemos a primazia da reciclagem sobre a incineração, o objetivo é melhorar a reciclagem, os avanços não se esgotaram”, Karolina Zimmermann

Os ratos, mosquitos, baratas e o mau cheiro que infestavam o local desapareceram, garantiu a bióloga Bruna do Nascimento Koti, professora do ensino básico e voluntária permanente da horta, onde estava, assim como Neves, no dia em que a IPS visitou o espaço.

Agora, a Companhia Pública de Melhorias da Capital (Comcap) também faz lá uma compostagem limpa, com os resíduos orgânicos coletados pela população em baldes plásticos fechados distribuídos pela prefeitura de Florianópolis.

Além de fornecer hortaliças baratas e reconhecidamente saudáveis, sem agrotóxicos, a horta promove a convivência, com uma reunião para tomar chá às quintas-feiras e, às vezes, o cultivo coletivo em geral aos sábados, exemplificou Koti.

Bruna do Nascimento Koti é uma das voluntárias que cuida da horta do Portal de Ribeirão, no sul da cidade brasileira de Florianópolis, onde se promove a vida comunitária e se fornecem alimentos saudáveis aos vizinhos e aos horticultores voluntários. Imagem: Mario Osava / IPS

A prefeitura de Florianópolis escolheu a compostagem e a reciclagem como alternativas centrais para a gestão dos resíduos sólidos gerados pelos 537 mil habitantes da cidade, aos quais se somam muitos turistas e moradores temporários durante o verão austral.

Estima-se que das 700 toneladas diárias de lixo, 43% sejam resíduos recicláveis secos e 35% orgânicos, cuja aproveitamento se busca aumentar, para reduzir a parte destinada ao aterro sanitário, de disposição controlada. Sobram 22% de resíduos não recicláveis.

Atualmente, apenas 13% do total é “valorizado”, ou seja, reciclado, enquanto os 87% restantes continuam sendo enviados para o aterro sanitário no município vizinho de Biguaçu, a 45 quilômetros de Florianópolis, que recebe o lixo de 23 cidades, reconheceu à IPS Karina de Souza, diretora de resíduos sólidos da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Florianópolis.

Mas as estatísticas oficiais apontam avanços importantes. Os restos de alimentos aproveitados na compostagem aumentaram de 1.175 toneladas em 2020 para 5.126 toneladas em 2024, ou seja, mais do que quadruplicaram, de acordo com os registros de Souza.

Os orgânicos verdes, como são chamados os resíduos de poda de árvores e outras vegetações, mais que dobraram durante esse período. O vidro também se multiplicou por 2,5 e os materiais que chegam misturados e passam por uma separação antes da reciclagem quase quadruplicaram.

O programa “Lixo Zero”, adotado pela prefeitura em 2018, estabelece como meta aproveitar 60% dos resíduos secos e 90% dos orgânicos até 2030, uma meta que parece distante.

Lixo já separado para reciclagem, neste caso vidro. Pneus, plásticos e papelões são outros materiais acumulados para aproveitamento no Centro de Valorização de Resíduos, próximo ao centro da cidade de Florianópolis, no sul do Brasil. Imagem: Mario Osava / IPS.

O lixo tem valor

O Centro de Valorização de Resíduos da Comcap, localizado no bairro de Itacorubi, próximo ao centro da cidade e ao lado do Jardim Botânico, é o coração da política municipal que busca resolver o desafio do lixo.

Ele concentra o grande pátio de compostagem da cidade, uma central para separar os resíduos recicláveis e outra para transbordar o lixo descartável e compactá-lo em caminhões maiores para transporte ao aterro sanitário.

Além disso, inclui um Museu do Lixo, destinado especialmente à educação ambiental, e um ponto ecológico onde os residentes depositam seus resíduos recicláveis, como madeira, aparelhos eletrônicos, papel, plásticos e vidro.

“Sofríamos preconceitos, discriminação e vergonha, agora ganhamos respeito”, Volmir dos Santos

Existem nove pontos ecológicos distribuídos pela cidade, que recebem cerca de 11.000 toneladas anuais de resíduos recicláveis para classificação e manuseio.

Esses resíduos, também coletados de outras fontes, são transportados para armazéns onde são acumulados separadamente vidros, embalagens de papelão, papéis ondulados, plásticos e pneus destinados à reciclagem. Mas eles chegam misturados com lixo e precisam passar por uma separação e classificação manual, chamada triagem.

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É a área da Associação de Coletores de Material Reciclável que, por meio de um contrato com a Comcap, se encarrega de destinar separadamente os resíduos aos compradores, em geral a indústria que os recicla.

Dos 75 associados, cerca de 40% são imigrantes, a maioria venezuelanos, mas também peruanos, haitianos e colombianos, segundo contou Volmir dos Santos, presidente da associação, durante a visita da IPS às instalações.

Fundada em 1999, inicialmente o grupo era formado por catadores de lixo nas ruas. Com o avanço da gestão municipal, a coleta seletiva em residências, indústrias e comércio, além dos ecopontos, eles se transformaram em “triadores”, que separam, classificam e vendem os resíduos prontos para reciclagem.

“Sofríamos preconceito, discriminação e vergonha, agora ganhamos respeito”, comemorou Dos Santos.

Dois jovens venezuelanos que imigraram para o Brasil e conseguiram emprego no Centro de Valorização de Resíduos de Florianópolis, capital do estado brasileiro de Santa Catarina, no sul do país. Na instalação também trabalham migrantes haitianos e peruanos. Imagem: Mario Osava / IPS

Não incinerar o lixo

Mas o amplo movimento dos trabalhadores da reciclagem, de várias associações e cooperativas, busca influenciar os planos municipais. Ele se opõe, por exemplo, à queima de resíduos, a parte ainda não reciclável, para geração de energia, uma alternativa de uso crescente em países industrializados.

Já existem pelo menos 3.035 usinas de combustão de resíduos sólidos, conhecidas como Waste-to-Energy em inglês, destacou Yuri Schmitke, presidente da Associação Brasileira de Energia de Resíduos (Abren), que reúne 28 empresas do setor.

É a forma de atingir a meta de “lixo zero” ou a eliminação dos aterros sanitários, já que a reciclagem tem limites, há sempre uma porcentagem que não consegue ser reutilizada e sua incineração substitui os combustíveis fósseis, argumentou.

Países como Alemanha, Suíça, Áustria e as nações nórdicas europeias conseguiram usar 100% do lixo, observou ele, eliminando esses aterros ou depósitos finais de resíduos sólidos.

Restrições e suspeitas de danos ambientais e até mesmo sanitários foram dissipadas em vários países europeus, Japão e Coreia, com a implantação dessas usinas, mesmo em áreas centrais de grandes cidades, sem tais efeitos negativos, destacou.

Paris já tem três delas em seu chamado centro ampliado, onde a densidade populacional chega a 15.000 habitantes por quilômetro quadrado, exemplificou.

“A incineração encerra o ciclo, exclui definitivamente a reciclagem, e o Brasil é muito diferente da Europa, já teve experiências fracassadas”, rebateu Dorival Rodrigues dos Santos, presidente da Federação das Associações e Cooperativas de Catadores de Santa Catarina, que diz representar 28 mil trabalhadores.

Ele reclama um amplo debate entre técnicos e coletores sobre o tema, diante de anúncios de que essa alternativa começa a ganhar adeptos no Brasil. O município de Joinville, com 616.000 habitantes e a 170 quilômetros de Florianópolis, tem planos de instalar uma usina para gerar eletricidade com a queima de lixo.

Florianópolis pretende destinar os resíduos não recicláveis à indústria cimenteira, que tem interesse em usá-los como combustível em vez dos fósseis, informou De Souza, diretora de resíduos sólidos de Florianópolis.

Aparecida Napoleão lidera um movimento de coleta de lixo em seu prédio, como um exemplo dos benefícios da separação e reciclagem de diferentes materiais na cidade de Florianópolis, no sul do Brasil, que tem entre seus objetivos sustentáveis o de “lixo zero”. Imagem: Mario Osava / IPS

Reciclagem em primeiro lugar

“Defendemos a primazia da reciclagem sobre a incineração, o objetivo é melhorar a reciclagem, os avanços não se esgotaram”, segundo Karolina Zimmermann, engenheira que trabalha com os coletores.

O avanço na reciclagem depende não apenas de novas tecnologias, como aquelas que separam materiais misturados ou mesmo fundidos, corantes e elementos químicos em plásticos ou papelão. A educação ambiental dos consumidores para que separem os resíduos é fundamental para aumentar a reutilização.

Aparecida Napoleão é um exemplo de como a reciclagem se tornou popular. Em seu prédio de 126 apartamentos de luxo, ela lidera um movimento de separação detalhada de todos os resíduos, desde pequenas embalagens de vidro que destinam-se a produtores artesanais de geleias até papéis especiais que podem ser transformados em cadernos, plásticos e até tampas de garrafas.

Assistente social aposentada da prefeitura de Florianópolis, ela organizou no térreo do prédio uma série de prateleiras e recipientes para dezenas de tipos de materiais. Ela tenta orientar seus vizinhos, mas reconhece que, mesmo assim, sempre há quem coloque o lixo no lugar errado.

“É um trabalho minucioso, é preciso ter paciência, explicar, pedir repetidamente, até que entendam a importância da separação”, afirmou.

Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.

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