Assédio judicial, uma ameaça crescente ao jornalismo no Brasil

Os jornalistas brasileiros são obrigados a ouvir as declarações de autoridades como a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, como parte de seu trabalho. Mas, por vezes, sofrem assédio judicial por publicarem informações que incomodam personalidades com poder económico, político ou jurídico. Imagem: Fotos Públicas.
POR MARIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – Marcelo Auler ficou com apenas 160 reais no bolso. Em 14 de janeiro de 2025, um juiz bloqueou cerca de 21 mil reais (3.500 dólares) que ele tinha em suas três contas bancárias, uma das quais utilizada para receber sua pensão de jornalista assalariado.
As outras duas contas eram utilizadas para pagar a remuneração do seu atual trabalho como jornalista freelance e as contribuições para o seu próprio blogue. Sem dinheiro para pagar os cartões de crédito, que venciam alguns dias depois, Auler escapou da fome graças a empréstimos e ajuda de amigos.
Felizmente, só congelaram o que ele tinha nos bancos e não o seu rendimento posterior. Assim, em fevereiro, ele conseguiu recompor a sua vida financeira, mas foi condenado a pagar 76.119 reais (13.470 dólares) a uma juíza do estado do Paraná, que alegou ter sido ofendida em sua honra por uma reportagem de Auler, publicada em julho de 2018.
Esta é uma das inúmeras ações judiciais que estão assombrando a atividade jornalística no Brasil, já em crise devido à perda de audiência e de fontes de financiamento.
“O uso abusivo da justiça, alegando crimes contra a honra, é o novo padrão de perseguição para calar a imprensa, baseado em critérios subjetivos, não em erros de informação ou falta de apuração. Isso tem efeitos devastadores”: Samira de Castro.
O escritório de advocacia Flora, Matheus & Mangabeira, sediado no Rio de Janeiro, responde por cerca de 300 processos contra jornalistas e meios de comunicação.
“Alguns desses casos são tratados em conjunto com a rede de proteção a jornalistas e comunicadores, organizada pelo Instituto Wladimir Herzog, Artigo 19, Repórteres Sem Fronteiras e Intervozes”, disse à IPS o advogado André Matheus, um dos sócios do escritório.
As organizações não governamentais citadas defendem os direitos humanos, a liberdade de expressão e a democratização da comunicação. Herzog foi um jornalista assassinado sob tortura em 1975 pela ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985.

Jornalistas prestam homenagem ao cinegrafista morto por uma bomba de gás atirada pela polícia durante um protesto de rua no Rio de Janeiro em 2014. A violência contra jornalistas é agravada pelo assédio judicial contra a liberdade de imprensa. Imagem: Luis Macedo / Câmara dos Deputados.
Censura em nome do bolso
Pedir indenização por danos morais se tornou uma estratégia de censura para calar jornalistas e meios de comunicação, segundo Matheus. A Constituição Brasileira de 1988, ao detalhar os direitos pessoais e civis, oferece instrumentos para reagir, segundo ele. “Temos tido sucesso em 95% dos casos com a ação constitucional no Supremo Tribunal Federal (STF)”, disse Matheus, que atualmente cursa doutorado sobre o mesmo tema.
As decisões do STF nos últimos anos, que asseguram a liberdade de expressão e de imprensa e condenam artimanhas que as reprimem, como o assédio judicial, favorecem a defesa dos jornalistas, mas não impedem a perda de tempo, a autocensura, os custos financeiros e, às vezes, a privação, como aconteceu com Auler. E também o fim ou a redução de carreiras.
Elvira Lobato, uma conhecida jornalista do diário Folha de São Paulo, disse que tinha antecipado a reforma após o stress do primeiro grande caso conhecido de assédio em massa.
Uma de suas reportagens sobre os múltiplos negócios da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), publicada em 15 de dezembro de 2007, provocou uma reação furiosa do império neopentecostal, que resultou em 111 processos judiciais espalhados por várias cidades do país nos meses seguintes.
Ela e seu jornal venceram todas as batalhas judiciais, mas a jornalista reconheceu, em entrevista à TV Cultura de São Paulo, em 17 de dezembro de 2020, que a Igreja Universal havia atingido seu objetivo de silenciar um veículo de comunicação que denunciava sistematicamente sua exploração corporativa da religião.
Ela própria deixou de escrever sobre a IURD, tendo perdido a sua imparcialidade quando lhe foi imposto o estatuto de contraparte judicial.

O advogado André Matheus, que defende jornalistas brasileiros acusados de difamação ou ofensa à honra de pessoas citadas nas suas reportagens, classifica como censura as ações judiciais que impõem indenizações por danos morais. Imagem: Cortesia de André Matheus
Piada fatal
Outro caso de grande repercussão, iniciado pela mesma igreja, teve como vítima o jornalista e escritor João Paulo Cuenca, por ter publicado na rede social Twitter, hoje X, 16 de junho de 2020, a frase “O Brasil só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.
Era uma paráfrase da máxima do padre francês Jean Meslier, que viveu no século 18 e falava em enforcar o último rei nas tripas do último padre. O ultra-direitista Jair Bolsonaro foi presidente do Brasil de 2019 a 2022.
A piada custou a Cuenca o inferno de 144 processos em tribunais de 18 dos 26 estados brasileiros e no distrito federal de Brasília, com pedidos de indenização que totalizam 3,3 milhões de reais (645 mil dólares), a perda do correspondente da agência de rádio e televisão alemã Deutsch Welle e muitas ameaças de morte.
Cuenca conseguiu que os processos fossem arquivados com a ajuda da Media Defence, uma organização internacional de apoio jurídico a jornalistas e meios de comunicação independentes de todo o mundo, com sede em Londres, cujo último relatório anual, de 2023, regista 595 casos assistidos em mais de 70 países.
Além disso, a sua acusação virou-se contra os seus acusadores. Em 3 de fevereiro de 2025, o Ministério Público Federal moveu uma ação contra a Igreja Universal, pedindo uma indenização de cinco milhões de reais (US$ 880 mil) por danos morais coletivos por promover a perseguição judicial de Cuenca.
Caso seja concedida, o dinheiro será destinado a projetos de combate à violência contra jornalistas.

O jornalista Marcelo Auler, condenado a uma indenização por alegados danos morais a uma juíza que se sentiu ofendida na sua honra por uma reportagem sobre a sua decisão de devolver ao Haiti duas crianças que se refugiaram com a família no Brasil após o terremoto que matou a mãe biológica no seu país. Imagem: Cortesia de Marcelo Auler.
Supremo Tribunal Federal protetor
O STF condenou explicitamente, em 22 de maio de 2024, como assédio judicial, a prática de multiplicar ações simultâneas em tribunais distantes uns dos outros para dificultar a defesa da expressão e da atuação jornalística.
O abuso de ações judiciais por supostos danos morais aumentou com a ascensão política da extrema-direita no país, em guerra aberta contra o jornalismo independente.
O empresário Luciano Hang, dono de uma rede de lojas comerciais e próximo a Bolsonaro, é o campeão individual dessas tentativas de intimidação de jornalistas.
Entre 2008 e março de 2024, ele promoveu 53 ações classificadas como abusivas, segundo relatório da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que lançou o Monitor do Assédio Judicial contra Jornalistas, projeto que coleta sistematicamente dados sobre esse tipo de abuso.
O projeto conta com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O governador do estado de Mato Grosso, Mauro Mendes, do partido de direita União Brasil, também entrou com ações judiciais contra jornalistas que criticam sua administração ou as empresas de seus familiares, suspeitos de favorecimento político, disse o advogado Matheus.
A deputada nacional Julia Zanatta, do Partido Liberal, no qual se concentra a extrema-direita, incluindo Bolsonaro, é a campeã entre os parlamentares, com 12 processos contra jornalistas, segundo o relatório da Abraji.
“O uso abusivo da Justiça, alegando crimes contra a honra, é o novo padrão de perseguição para calar a imprensa, pois se baseia em critérios subjetivos, não em erros de informação ou falta de apuração. Isso tem efeitos devastadores”, disse Samira de Castro, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
O governador Mendes, que já levou 16 jornalistas a julgamento, usa a polícia para pressioná-los e denuncia os jornalistas que compartilham notícias negativas para ele como uma “organização criminosa”.
Castro disse à IPS, por telefone, de Fortaleza, uma das capitais do nordeste brasileiro, que a Fenaj está pedindo sua cassação política no Supremo Tribunal Federal por esses abusos.

A deputada Julia Zanatta, do Partido Liberal, de extrema direita, é a legisladora brasileira que esteve no centro da maioria dos casos de perseguição judicial a jornalistas. Processou pelo menos 12 jornalistas na tentativa de os penalizar com indemnizações por danos morais e de apagar as reportagens que fizeram sobre ela. A sua corrente política opõe-se à regulação das plataformas digitais, em defesa da liberdade de expressão, de acordo com os seus discursos. Imagem: Redes Sociais
Juízes, também carrascos
Para além da extrema-direita, os juízes que reagem às críticas ao seu poder também se destacam na ação contra os jornalistas
Cinco jornalistas do jornal Gazeta do Povo tiveram que se defender em 45 processos judiciais por danos morais no Paraná, em 2016, por terem publicado uma reportagem sobre os salários dos juízes locais, que estavam acima do limite constitucional e ainda eram acrescidos de benefícios questionáveis.
Uma juíza de uma vara de infância do Paraná processou Auler por uma reportagem de 2018 em que a denunciou por tentar devolver duas crianças refugiadas haitianas ao seu país de origem, contra a vontade delas e sem cumprir as regras estabelecidas.
A juíza alegou na sua ação judicial que a reportagem não correspondia à verdade e a expunha a riscos ao identificá-la pelo seu nome completo, exigindo uma indemnização por danos morais e a retirada da reportagem nos meios digitais que a publicaram. Dois outros juízes decidiram a seu favor.
“Eu não inventei a história”, disse o jornalista à IPS, acrescentando que a baseou em fatos comprovados e depoimentos de atores do caso, mas acredita ser mais provável que tenha de pagar uma indenização, apesar de ter recorrido ao STF.

Capa da edição de 16 de dezembro de 2017 da revista Isto É, que destaca a reportagem que custou aos seus autores um processo por danos morais que pode custar-lhes o pagamento de uma indemnização equivalente a 35 500 dólares, exigida por Gilmar Mendes, o juiz decano do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Imagem: Isto É
Membro do mesmo tribunal, Gilmar Mendes, o decano dos 11 juízes que o integram e que são chamados de ministros, é autor de vários processos contra jornalistas.
Rubens Valente, premiado repórter de grandes jornais, hoje na agência de jornalismo investigativo Pública, teve de pagar 319 mil reais em 2022 a Mendes, que considerou difamatória a forma como ele aparece no livro “Operação Banqueiro”, de sua autoria, que trata de um escândalo financeiro.
Valente, que foi absolvido em primeira instância e condenado em dois tribunais superiores, recorreu a uma campanha de donativos em que participaram mais de 2.400 pessoas para angariar o montante em dívida.
O caso foi um trauma para o jornalismo brasileiro.
O próprio Mendes processou Octávio Costa, atual presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e a Tábata Viapiana, pedindo uma indenização que Costa estima poder atingir agora mais de 200 mil reais (35.500 dólares), com juros e correções monetárias.
A ação é decorrente de uma decisão judicial sobre uma reportagem de capa da revista Isto É, de 15 de dezembro de 2017, sobre a venda supostamente irregular de uma universidade de propriedade de Mendes ao governo do estado do Mato Grosso.
Costa, então chefe da sucursal da revista em Brasília, e o repórter ganharam nas duas primeiras instâncias, que rejeitaram as alegações. A instância seguinte, o Superior Tribunal de Justiça, concordou com essas decisões e ainda negou provimento ao recurso de Mendes em 2019.
Este tribunal é de âmbito nacional e representa a penúltima instância da justiça brasileira, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal, que é a instância máxima no Brasil, em todos os casos, e funciona também como um tribunal constitucional.
Mas o processo contra Costa e Viapiana voltou a ganhar vida quando outro juiz do Superior Tribunal de Justiça o retomou devido a “peculiaridades do processo” e acolheu o recurso de Mendes para um novo julgamento. “É uma cambalhota, não é normal no STJ”, disse Costa à IPS, temendo uma prolongação do caso, julgado há mais de cinco anos.
Artigo publicado originalmente na IPS.

É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.