Brasil decide livrar salas de aula da invasão de celulares

POR MARIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – Era preciso repelir a “invasão” dos celulares nas salas de aula brasileiras, até mesmo para promover um debate sobre o uso das tecnologias na educação, segundo Silvana Veloso, pedagoga com vasta experiência no tema.
No Brasil, foi promulgada em 13 de janeiro uma lei que proíbe “o uso, pelos alunos, de dispositivos eletrônicos portáteis pessoais durante as aulas, recreios ou intervalos entre aulas, em todas as etapas do ensino básico”, o que o torna o primeiro país da América Latina restringir nacionalmente o uso desses dispositivos.
Um acordo inusitado entre as diferentes e opostas correntes políticas permitiu a aprovação da nova lei pelo legislativo Congresso Nacional em dezembro de 2024. Apenas alguns deputados da extrema-direita, que no Brasil está majoritariamente agrupada no Partido Liberal , votaram contra.
Querem que os alunos tenham celulares para filmar “práticas doutrinárias” dos professores e denunciam o ativismo ideológico marxista que, segundo a extrema-direita, contamina a educação brasileira. Mas mesmo parte dos seus legisladores aprovou a lei.
A restrição do uso do celular nas escolas pretende “salvaguardar a saúde mental, física e psicológica de crianças e adolescentes”, justifica a norma aprovada, a chamada lei 15.100, que prevê exceções à proibição, como o uso pedagógico, em casos de necessidade por algum problema de saúde ou incapacidade.
A nova regra entra em vigor de imediato, sem período de adaptação, pelo que será aplicada a partir de fevereiro, quando começa o ano letivo neste país de 212 milhões de habitantes.
“É preciso introduzir tecnologias em cada escola de forma organizada, sem os abusos atuais”: Bernardo Baião.
“Essa lei é pequena, limitada, mas positiva porque emociona a comunidade, os pais, os professores e até o responsável pela cantina da escola, provoca debate”, avaliou Veloso, que não rejeita a tecnologia nas escolas, mas sim proclama e promove seu uso adequado.
Como pedagoga, ela coordenou o BH Digital, programa de inclusão digital em Belo Horizonte, capital do sul de Minas Gerais, com 2,3 milhões de habitantes, desde sua implantação em 2004 até 2012.
O programa difundiu telecentros, com 10 e 20 computadores conectados à Internet, em órgãos públicos como bibliotecas e postos de atendimento, centros culturais e organizações não-governamentais, além de uma unidade móvel, um carrinho com equipamentos para ministrar aulas de informática nos bairros.
Com 40 de seus 60 anos dedicados à educação, ela também atuou como secretária de Educação de Rio Acima , município de 10 mil habitantes, de 2022 a 2024, quando implementou um programa de tecnologia nas escolas locais, que incluiu laboratórios de robótica. Ela continua como professora e conselheira local sobre o assunto.
Rio Acima e muitos outros municípios receberam equipamentos de informática, como computadores e tablets, mas sem saber o que fazer com eles.

Escolas e professores despreparados
Diante da verdadeira invasão dos celulares, as escolas e os professores, em geral, não estão preparados para incorporar as novas tecnologias no ensino, lamentou Veloso. Não elaboraram um projeto pedagógico para incorporá-los.
Em relação aos celulares, em poder da grande maioria dos alunos, a pedagoga viveu casos dramáticos.
Em reação à violência nas escolas, que se agravou no final de 2022 e início de 2023, com cinco ataques e 11 mortes em cinco estados brasileiros, estudantes de nove e 10 anos de Rio Acima organizaram redes de autodefesa por meio do WhatsApp.
Instruções sobre o uso de facas de cozinha para “sangrar bandidos” que invadiam escolas e o preparo de coquetéis molotov incendiários faziam parte dos diálogos da emissora, até que uma das mães soube pelos próprios alunos, disse Veloso à IPS por telefone de Rio Acima, onde ela mora em uma fazenda.
O líder do movimento tinha apenas 10 anos e liderava alguns grupos de diálogo no WhatsApp. “Eles reproduziram a violência” da qual poderiam ser vítimas, disse a pedagoga.
Outro caso anterior, de 2017, foi descoberto devido a lesões no braço de um estudante. Eram meninas que se automutilavam, incentivadas por um site que promovia disputas entre quem era capaz de se cortar.
A formação, principalmente de professores, para gerir e aproveitar as inovações tecnológicas é a questão central do desafio imposto à educação, disse Veloso.
“A tecnologia não produz retrocesso, nós somos responsáveis. A humanidade sempre buscou a comunicação interativa. O que conseguimos é maravilhoso, o telefone que permite falar enquanto se vê a imagem do interlocutor é fascinante”, mas exige debate, diálogo, para o seu bom uso, concluiu.
Cartaz publicitário da Prefeitura de Rio Acima que promove o uso de tablets e computadores na educação ambiental dos estudantes do município. Imagem: Prefeitura de Rio Acima.

Danos no celular
Acumulam-se estudos que apontam efeitos negativos do celular na aprendizagem, devido ao déficit de atenção, ao vício em redes sociais e até ao agravamento da ansiedade entre os alunos.
O Brasil se tornou o primeiro país latino-americano a aprovar uma lei que restringe o uso de celulares nas escolas, seguindo uma tendência global.
Um quarto dos seus 194 estados-membros já adotou medidas restritivas, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), especialmente na Europa e na Ásia.
Embora entre em vigor em fevereiro, a vigência efetiva da nova lei brasileira exige regulamentação e protocolos para sua aplicação nas escolas sob gestão estadual (secundária) e municipais (primária).
Depois do consenso político, fomentado pela comprovada distração da atenção provocada pelo celular, tanto nas escolas como no trabalho, a nova lei impõe agora uma reflexão sobre os projetos pedagógicos nas escolas.
“É preciso introduzir tecnologias em cada escola de forma organizada, sem os abusos atuais”, segundo Bernardo Baião, coordenador de Políticas Educacionais de Todos pela Educação , organização da sociedade civil sem fins lucrativos que busca promover uma educação básica de qualidade no Brasil.

Dois alunos de Rio Acima participam do programa de tecnologia nas escolas do município, para o melhor aproveitamento dos recursos digitais no ensino. Imagem: Prefeitura de Rio Acima.
A proliferação dos celulares, aliada às redes sociais, tem uma dimensão cognitiva, afetando a aprendizagem. Os próprios alunos admitem que isso tira a atenção dos estudos.
“Mais tempo de tela, menos aprendizado”, disse Baião, formado em história e dedicado à educação, que atua em tempo integral há três anos no movimento Todos pela Educação, do Rio de Janeiro.
Outra dimensão do desafio tecnológico é a emocional, de quem “não consegue viver sem as redes”, e a de interação social, de “conviver e brincar na escola, tornando-a barulhenta por natureza, sem o silêncio do celular, que aproxima as pessoas distantes e afasta as que estão próximas”, disse à IPS.
“A tecnologia não é a inimiga. Você tem que combinar as diferentes ferramentas. O livro impresso é melhor para memorizar, mas o digital é mais adequado para personalizar o ensino, atendendo diferentes necessidades e interesses”, comentou.
“O professor é mais importante que a tela do computador ou do celular, a tecnologia não o substitui”, frisou.
A proibição de telefones já vinha ocorrendo principalmente em escolas particulares e quatro dos 26 estados brasileiros já tinham aprovado legislação própria. Na verdade, 28% das escolas já adotavam uma proibição total, com poucas exceções, até 2023, conforme o Comitê Diretor da Internet.
Esse comitê é formado por participantes do governo e da sociedade civil, incluindo acadêmicos e empresas do setor. Colabora na gestão da Internet, para manter sua neutralidade perante os interesses políticos e privados e estabeleceu os pontos centrais da lei brasileira que rege a Internet, o Marco Civil da Internet.
A rápida aprovação da lei nacional deveu-se a um quase consenso da opinião pública. O não governamental Instituto Locomotiva realizou uma pesquisa em outubro de 2024 que mostrou que 82% dos entrevistados eram a favor da proibição do celular nas escolas.
Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.

Foto de capa: presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a sua visita a uma escola em Salvador, capital do estado da Bahia, no nordeste do Brasil, no dia 17 de outubro do ano passado, onde todos os alunos levantaram os celulares para tirar fotos com o governante. Imagem: Ricardo Stuckert/PR

É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.