Erradicação da fome no Brasil exige redução do desperdício de alimentos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminha por uma feira de alimentos na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 3 de julho, antes de anunciar a linha de crédito para o ano agrícola de 2024/2025. A abundância de alimentos não impede a fome de 8,4 milhões de brasileiros, enquanto um terço do que é produzido vai para o lixo. (Imagem: Ricardo Stuckert/PR).
POR MARIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – O enorme desperdício de alimentos, enquanto milhões de pessoas passam fome, reflete o desequilíbrio do sistema alimentar no Brasil, que várias iniciativas públicas e privadas estão tentando corrigir.
De 161,3 milhões de toneladas de alimentos produzidos a cada ano no Brasil, 55,4 milhões de toneladas são perdidas na cadeia de produção, transporte, comércio e consumo, conforme a coalizão empresarial Pacto Contra a Fome, que realizou um estudo sobre o tema em 2021, antes de lançar suas ações em maio de 2023.
“É uma incoerência gigantesca em um país com uma capacidade produtiva tão grande”, disse Maria Siqueira, diretora de políticas públicas e projetos do Instituto Pacto Contra a Fome.
O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores agrícolas do mundo. Em 2023, sua produção de grãos alcançou 316 milhões de toneladas, mas grande parte dela não é destinada ao consumo humano, mas sim à alimentação animal, às exportações e à indústria, especialmente o setor de energia.
O sucesso agrícola não impede que 8,4 milhões de brasileiros passem fome, segundo a Organização das Nações Unidas em seu relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2024 (Sofi), com dados de 2021-2024. Eram nove milhões no triênio anterior.
“O desperdício de alimentos é uma incoerência gigantesca em um país com uma capacidade produtiva tão grande”, Maria Siqueira.
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), uma rede de pesquisadores acadêmicos, estimou que, entre novembro de 2021 e abril de 2022, 33,1 milhões de pessoas estarão em situação de fome, além de 58,7 milhões da população nacional, que chega a 212 milhões de habitantes, em algum grau de insegurança alimentar.
As estimativas são feitas com metodologias diferentes. A da Penssan se baseia em pesquisas anteriores de períodos sem alimentação e foi realizada em um momento de fortes efeitos da pandemia de Covid-19 e de ausência de medidas mitigadoras por parte do governo do ultradireitista Jair Bolsonaro (2019-2022).

Uma cozinha solidária na cidade de São Paulo oferece alimentação a pessoas em situação de rua, com alimentos fornecidos pelo Programa de Aquisição de Alimentos do governo, que compra produtos da agricultura familiar para instituições assistenciais. Imagem: Paulo Pinto / Agência Brasil.
Causas variadas do desperdício
As causas do desperdício vão desde “causas sistêmicas, como os padrões de consumo”, por exemplo, a preferência por produtos “bonitos” que leva os agricultores a descartar parte da colheita, até problemas “no maquinário agrícola, na logística, na embalagem e no layout das lojas”, contou Siqueira à IPS por telefone, de Brasília.
Soma-se a isso “um fator importante no Brasil, que é cultural: a tendência à fartura na mesa, a receber muitos convidados, o que resulta na mentalidade de colocar na mesa mais do que o necessário. Isso gera um desafio em toda a cadeia alimentar, não apenas na casa do consumidor”, complementou.
O Pacto tem como meta a erradicação da fome no Brasil até 2030 e a promoção da alimentação adequada para todos até 2040. O estado do Ceará, com 9,2 milhões de habitantes na região Nordeste, que tem a maior concentração de pobreza, é o território escolhido como amostra dessa possibilidade.
O estado reúne as condições para ser “um primeiro caso de sucesso”, pois já implementou seu programa “Ceará sem Fome”, com políticas do governo local e apoio da sociedade civil e do empresariado, além de avanços educacionais já alcançados e reconhecidos nacionalmente, justificou Siqueira.
Diferentes atores e esforços
Ações diversificadas dos setores público e privado e de organizações sociais estão sendo tomadas contra a fome e o desperdício. Bancos de alimentos, cozinhas solidárias, restaurantes populares, distribuição de alimentos em cestas básicas ou por meio de cartões de compras são iniciativas que vários atores têm disseminado pelo país.
A associação civil conhecida como Banco de Alimentos (OBA), com sede em São Paulo, já distribuiu mais de 20.000 toneladas de alimentos em dezenas de cidades brasileiras, especialmente no estado de São Paulo, desde a sua fundação em 1998.
Sua função básica é a “colheita urbana”, a coleta junto a empresas que doam alimentos que perderam seu valor comercial, por estarem próximos do prazo de validade ou com algum tipo de dano, mas que estão aptos para o consumo, para distribuição a instituições sociais que os entregam ao consumidor final.
Só na cidade de São Paulo, que tem 11,5 milhões de habitantes, esses alimentos chegam a 38 mil pessoas todos os dias, por meio de 65 instituições.
Essas entregas são permanentes, mas o OBA também participa de campanhas pontuais em situações de emergência, como as enchentes que atingiram o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024.
“Somos o banco de alimentos pioneiro como iniciativa da sociedade civil”, disse Luciana Chinaglia Quintão, presidente da OBA, em entrevista telefônica à IPS de São Paulo. Segundo ela, os municípios do estado criaram cerca de 250 organizações desse tipo. Existem 5.569 municípios no Brasil.
É uma batalha conseguir alimentos como uma organização não governamental, há empresas que temem problemas legais, dada a legislação duvidosa, e outra para organizar a logística de distribuição, mas “nós dominamos essa”, disse Quintão, que tem 20 trabalhadores permanentes na OBA, seus próprios veículos e, às vezes, outros contratados de terceiros.

Autoridades brasileiras e das Nações Unidas participaram em 22 de outubro, em Brasília, de um workshop sobre a prevenção de perdas e desperdício de alimentos na América Latina e no Caribe. (Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil).
Contribuição ambiental
Além de sua função social, os bancos de alimentos desempenham um papel ambiental ao reduzir o lixo orgânico, que emite gases de efeito estufa, destacou.
Esses bancos também contribuem para a redução da fome, mas com limitações. Para erradicar a fome são necessários empregos e “políticas públicas reais, não populistas”, com responsabilidade fiscal e sem concentração de renda, afirmou como economista.
Além de coletar e distribuir alimentos, a OBA atua na educação nutricional e na disseminação de conhecimento, o que ela chama de conscientização, para evitar o desperdício e mudar as condições que geram a fome.
O Serviço Social do Comércio (SESC), entidade ligada a empresas comerciais, mas com recursos públicos, também criou seus bancos de alimentos na rede conhecida como Sesc Mesa Brasil. Sua ação começou em 1994, apenas em São Paulo, mas depois se espalhou por todo o país de dimensões continentais.
Hoje conta com 95 “bancos”, que já distribuíram mais de 770 mil toneladas de alimentos para dois milhões de pessoas, segundo seu site institucional.
Outras iniciativas usam plataformas digitais para conectar entidades onde os alimentos são excedentes ou estão se deteriorando com organizações sociais que auxiliam pessoas que carecem de alimentos nutritivos.
O Connecting Food, assim chamado por ser um serviço internacional, promove essa ligação, além de apoiar empresas e projetos de combate ao desperdício de alimentos. A empresa informa que já atendeu 644 organizações da sociedade civil no Brasil, em 321 cidades e suplementou 30,5 milhões de refeições.
Na luta brasileira contra a fome, destaca-se a Ação da Cidadania, organização e movimento social nascido da campanha contra a fome liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, falecido em 1997, que mobilizou multidões e comitês em todo o Brasil a partir de 1993.
Em 1993, falava-se em 32 milhões de brasileiros passando fome.
A Ação distribuiu milhões de toneladas de alimentos e influenciou diretamente as políticas públicas que tiraram o Brasil do “mapa da fome” da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), entre 2014 e 2022.
A Accion também criou seu banco de alimentos há 10 meses, mas como parte de um conjunto de “equipes” que formam um centro de articulação de várias iniciativas que buscam promover um “ecossistema alimentar” sustentável, com soberania e nutrição adequada para todos, explicou Julia Schuback, coordenadora da área de projetos.
Além do banco, funcionam na sede da Ação, no Rio de Janeiro, uma cozinha solidária que distribui 1.000 refeições por dia a pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente as que vivem nas ruas, duas hortas urbanas e uma escola de gastronomia.
O objetivo é criar esse “centro combinado” de combate à fome e “aproveitamento integral dos alimentos” em oito dos 26 estados brasileiros, disse Schuback à IPS. Além de promover a agricultura familiar, políticas públicas, alimentação saudável e novas lideranças estão entre os objetivos mais amplos da Ação.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.

É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.