Extrema-direita brasileira freia a regulamentação das redes digitais

Extrema-direita brasileira freia a regulamentação das redes digitais

A aliança entre a força política da extrema-direita e o poder econômico das empresas transnacionais dificulta a aprovação final do projeto de lei contra as fake news num Congresso Nacional atualmente controlado por bancadas conservadoras.

POR MÁRIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – As plataformas e redes digitais facilitaram a ascensão da extrema-direita no Brasil na última década, assim como em outros países, numa simbiose que dificulta a regulação desses meios.

A internet gerou “um ambiente de comunicação propício ao discurso caraterístico da extrema-direita antidemocrática, que produz ignorância”, apontou Eugenio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

“A natureza dessas novas tecnologias de comunicação, menos adaptadas à abstração, às cadeias lógicas do pensamento, e mais à defesa dos valores morais, dos comportamentos e das emoções, oferece vantagens à direita”, explicou à IPS, por telefone, a partir da megalópole brasileira.

O uso generalizado das chamadas fake news nessas redes ameaça a democracia e, por isso, será duramente combatido nas eleições municipais de outubro, anunciou a nova presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Carmen Lúcia Rocha, ao tomar posse no dia 3 de junho.

Mas é uma batalha com armas limitadas. O Brasil ainda não tem legislação para regular os meios digitais que dominam a comunicação no mundo, como Google, Facebook, Instagram e Tik Tok.

O Senado aprovou em 2023 um projeto de lei proposto em 2020 para coibir a disseminação de mentiras, mas a Câmara dos Deputados emperrou a sua tramitação.

A aliança entre a força política da extrema-direita e o poder econômico dessas empresas transnacionais dificulta sua aprovação final em um Congresso Nacional atualmente controlado por bancadas conservadoras.

Em 2022, a União Europeia aprovou sua Lei de Serviços Digitais contra a desinformação, que os 27 países do bloco continuam adaptando às suas legislações.

A regulação depende da correlação de forças

Mas no Brasil, tal como nos Estados Unidos, a resistência à regulação é mais radical, devido a uma correlação de forças menos favorável à democracia do que na Europa, afirmou o cientista político brasileiro António Lavareda, numa palestra em 27 de junho, no Fórum Jurídico de Lisboa.

Uma lei brasileira é necessária porque não se trata apenas de conter a disseminação de notícias fraudulentas que podem ou não alterar o resultado das eleições, mas também de evitar “a corrupção do debate público” em detrimento do conhecimento, segundo Bucci.

Como professor, ele evita o termo “fake news”, por “cautela conceitual”, pois identifica nele uma contradição. Na sua opinião, uma notícia nunca é falsa, “pode conter um erro, não falsidade”.

“Tem uma origem, um autor, uma entidade responsável e pode ser questionada, verificada, desmentida e corrigida. As notícias fraudulentas podem ter a aparência de informação objetiva, por vezes com linguagem jornalística. A sua falsificação está na forma e não no conteúdo, não tem origem declarada, nem instituição ou autor responsável”, explicou.

Uma notícia errada pode ter consequências graves, como a notícia sobre as armas químicas no Iraque, que justificou a invasão dos EUA em 2003, exemplificou. Mas a notícia foi corrigida anos mais tarde. Fraudulenta, como ele prefere chamar, foi, por exemplo, a história de que Barack Obama não é americano, mas queniano.

Eugenio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em seminário sobre mídia pública no Congresso Nacional legislativo, em Brasília. Imagem: Antonio Cruz/Agência Brasil.

Necessidade de acordos internacionais

Uma legislação nacional ou regional, como a da Europa, não é suficiente para combater a “industrialização da mentira”, já que a comunicação é provavelmente a mais globalizada das atividades humanas, em que as fronteiras contam menos.

Além disso, as chamadas “big techs”, as empresas transnacionais de tecnologias da informação e da comunicação, detêm hoje um poder econômico e político sem precedentes, com empresas que têm um valor de mercado superior ao da maioria das nações.

A regulamentação deve ser alargada a fóruns multilaterais, como as Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e outros, como está se tentando para resolver a crise climática global”, afirmou Bucci.

Trata-se de uma questão global, tal como as alterações climáticas e as armas nucleares, que exigem acordos internacionais para serem tratadas com alguma eficácia”, afirmou.

No dia 24 de junho, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, anunciou os Princípios Universais para a Integridade da Informação, que incluem o empoderamento das pessoas contra a propagação de discursos de ódio e mentiras, transparência e meios de comunicação livres e plurais.

Trata-se de confrontar a desinformação que destrói a democracia, alimenta conflitos sangrentos e afeta os direitos humanos, a saúde pública e a ação climática, justificou a resolução.

É um documento importante, com princípios sobre os quais as nações podem basear as suas regulamentações, a partir das exigências comuns de democracia, avaliou o professor e autor do livro “A super-indústria do imaginário“.

Mas, ressaltou Bucci, é na política, especialmente nas eleições, que as notícias fraudulentas têm surgido como um dos grandes desafios da humanidade neste século.

O advogado-geral da União, Jorge Messias, que representa e defende o Estado perante outros poderes, instituições e indivíduos, reuniu delegados de plataformas digitais no dia 10 de maio, em Brasília, para pedir medidas que excluam mentiras e discursos de ódio das redes digitais. Imagem: Renato Menezes/Ascom Agu.

Mentiras eleitorais

No Brasil, o problema eclodiu nas eleições presidenciais de outubro de 2018, quando o candidato da extrema-direita e dos militares, Jair Bolsonaro, triunfou com uma maioria de 55,1% dos votos válidos, num total de 57,8 milhões de votos, no segundo turno.

Uma profusão de mentiras sobre a oposição, Fernando Haddad, e a esquerda em geral, manchou a campanha eleitoral. O “kit gay”, ou seja, um pacote de material para incentivar a homossexualidade entre estudantes, que Haddad teria distribuído nas escolas quando era ministro da Educação (2005-2012), é o mais lembrado.

Uma pesquisa do Instituto Ideia Big Data constatou que 67% dos 1.660 entrevistados em todo o país receberam informações falsas via redes digitais durante a campanha eleitoral de 2018 e 14% as repassaram a conhecidos.

Em uma luta de eficácia limitada, pessoas e organizações que checam ou verificam informações tentam desmentir as chamadas “fake news” e sua tradução como notícias falsas.

Gilmar Lopes, analista de sistemas de informática, é um pioneiro nesta atividade. Desde 2002, ele mantém o site e-farsas, onde revela mentiras espalhadas nas redes digitais.

No dia 26 de junho, ele tentou desmentir que o Supremo Tribunal Federal havia decidido liberar totalmente, sem restrições, o consumo de maconha no Brasil. Na realidade, ele apenas descriminalizou a posse de até 40 gramas da droga, quantidade considerada para consumo pessoal e não comercial.

Além disso, essa posse mínima continua sendo uma infração administrativa, não mais uma infração penal, e sujeita a penalidades como a obrigação de fazer um curso para aprender sobre os malefícios da droga.

Na política, as mentiras mais comuns tentam desacreditar as eleições, as urnas eletrônicas usadas no Brasil desde 1996 e alguns líderes, disse Lopes à IPS por telefone de São Paulo.

Autor do livro “Caçador de mentiras“, ele já sofreu ameaças de agressão e ações judiciais por suas atividades, que incluem uma colaboração voluntária com o Tribunal Superior Eleitoral, que reúne periodicamente especialistas em apuração, além de palestras e encontros sobre educação digital.

Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.

Foto de capa: A juíza Carmen Lúcia Rocha, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, no dia 3 de junho, durante sua posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O primeiro desafio será coordenar as eleições municipais de outubro de 2024. Imagem: Ricardo Stuckert/PR.

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