Bolsonaro: anistia e futuro retorno?
Durante longos anos como deputado, e também como Presidente, o capitão Jair Bolsonaro pregou, alto e bom som, a necessidade de um golpe para implantar no Brasil uma ditadura militar de natureza neofascista. Chegou a tentar, sem êxito, um golpe no dia 7 de setembro de 2021. Contou sempre com o apoio dos mais de 6 mil militares encastelados em cargos oficiais no Governo: segundo levantamento do TCU, realizado em 2021, 6.175 membros das Forças Armadas estavam ocupando cargos no Governo em 2020.
Diversos generais estiveram na linha de frente dessa ofensiva para destruir a democracia, como, entre outros, Luiz Eduardo Ramos, Augusto Villas Boas, Braga Netto, Eduardo Pazuello, e o próprio Ministro da Defesa, Paulo Sergio de Oliveira, além de almirantes e brigadeiros na chefia de suas armas.
Em seus 4 anos de governo, Bolsonaro cometeu dezenas de crimes. Segue a lista dos crimes pelos quais foi indiciado no relatório da CPI da Pandemia:
“Crimes do Presidente da República, Jair Bolsonaro
– prevaricação
– charlatanismo
– epidemia com resultado morte
– infração a medidas sanitárias preventivas
– emprego irregular de verba pública
– incitação ao crime
– falsificação de documentos particulares
– crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo)
– crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos)”.
Fonte: Agência Senado
O superpedido de impeachment de Jair Bolsonaro, protocolado em 30/06/2021 na Câmara dos Deputados, afirma que o presidente cometeu pelo menos 21 crimes descritos na Lei nº 1.079/1950 (Lei do Impeachment). São eles:
1. Crime contra a existência política da União. Ato: fomento ao conflito com outras nações;
2. Hostilidade contra nação estrangeira. Ato: declarações xenofóbicas a médicos de Cuba;
3. Crime contra o livre exercício dos Poderes. Ato: ameaças ao Congresso e STF, e interferência na PF;
4. Tentar dissolver ou impedir o funcionamento do Congresso. Ato: declarações do presidente e participação em manifestações antidemocráticas;
5. Ameaça contra algum representante da nação para coagi-lo. Ato: disse que teria que “sair na porrada” com senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), membro da CPI da COVID;
6. Opor-se ao livre exercício do Poder Judiciário. Ato: interferência na PF;
7. Ameaça para constranger juiz. Ato: ataques ao Supremo;
8. Crime contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Ato: omissões e erros no combate à pandemia;
9. Usar autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder. Ato: trocas nas Forças Armadas e interferência na PF;
10. Subverter ou tentar subverter a ordem política e social. Ato: ameaça a instituições;
11. Incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina. Ato: ir a manifestação a favor da intervenção militar;
12. Provocar animosidade nas classes armadas. Ato: aliados incitaram motim no caso do policial morto por outros policiais em Salvador;
13. Violar direitos sociais assegurados na Constituição. Ato: omissões e erros no combate à pandemia;
14. Crime contra a segurança interna do país. Ato: omissões e erros no combate à pandemia;
15. Decretar o estado de sítio não havendo comoção interna grave. Ato: comparou as medidas de governadores com um estado de sítio;
16. Permitir a infração de lei federal de ordem pública. Ato: promover revolta contra o isolamento social na pandemia;
17. Crime contra a probidade na administração. Ato: gestão da pandemia e ataques ao processo eleitoral;
18. Expedir ordens de forma contrária à Constituição. Ato: trocas nas Forças Armadas;
19. Proceder de modo incompatível com o decoro do cargo. Ato: mentiras para obter vantagem política;
20. Negligenciar a conservação do patrimônio nacional. Ato: gestão financeira na pandemia e atrasos no atendimento das demandas dos estados e municípios na crise de saúde;
21. Crime contra o cumprimento das decisões judiciais. Ato: não criar um plano de proteção a indígenas na pandemia.
Mas seus malfeitos vão muito além de seus crimes juridicamente comprováveis. Seria interminável elaborar uma lista, mas podemos fazer alguns destaques. Desvio de recursos públicos no MEC pelos pastores enviados por Bolsonaro. Sabotagem e corrupção na compra de vacinas. Sigilo por 100 anos nos cartões corporativos do presidente. Apoio às milícias no Rio de Janeiro. Compra de 51 imóveis com dinheiro vivo. Aumento inaceitável no preço dos alimentos e dos combustíveis. Retorno do Brasil ao Mapa da Fome. Incentivou desmatamento e incêndio de florestas, invasão de terras indígenas e garimpo ilegal. Privatizou estatais a preço vil, destruiu instituições democráticas responsáveis por políticas públicas. Cortou verbas destinadas à ciência, cultura, educação, saúde, meio ambiente e muitos projetos sociais. Apoiou a tentativa de golpe de Trump nos EUA e transformou o Brasil em pária internacional. Com a novidade do orçamento secreto, envolvendo mais de 50 bilhões de reais, tornou-se campeão mundial da corrupção.
Essa lista de crimes e malfeitos não pretende ser exaustiva. Se relembramos agora seus crimes contra a nação é porque já começou um movimento de políticos bolsonaristas visando à concessão de anistia a Bolsonaro, seus filhos e toda sua quadrilha.
O Brasil tem uma tradição de conciliação. Se prevalecer essa absurda proposta de anistiar Bolsonaro pelos crimes cometidos, ele será tratado como um político normal, que cometeu alguns erros, podendo conviver com a democracia. Ora, qualquer pessoa de boa fé sabe que isso não é verdade. Seu uso das regras democráticas é instrumental, ele não se identifica com a democracia. Pelo contrário, não faltam exemplos de suas declarações neofascistas e mesmo em favor dos movimentos neonazistas. Se tivesse alcançado seu intento, Bolsonaro seria um ditador tão ou mais sanguinário do que Pinochet. Seu atual “modelito” calado e chorão não apaga seus crimes contra a democracia.
A anistia, se acaso viesse a ser concedida, contribuiria fortemente para o futuro retorno de Bolsonaro e dos militares golpistas, renovando o ciclo das ameaças de golpe que eles tentaram, mas não conseguiram consumar. Na eleição, venceu a civilização contra a barbárie, a ciência contra a ignorância, a vacina contra a cloroquina, a razão contra o obscurantismo, o bom senso contra o fundamentalismo, a informação contra fake news, a democracia contra a ditadura.
As manifestações de bloqueio de estradas e lamentações nos muros dos quartéis não configuram ameaça real do famoso golpe que muitos na esquerda anunciaram repetidas vezes. O resultado eleitoral não será anulado. Esses manifestantes, financiados por empresários do agro e apoiados por militares e políticos bolsonaristas, estão sendo usados principalmente como massa de manobra e pressão para garantir junto ao novo Governo a preservação das vantagens, devidas e indevidas, aos militares, manutenção de alguns decretos secretos e imunidade ao próprio Bolsonaro que almeja não ser processado pelos seus delitos, elencados acima.
Mas o que os democratas brasileiros esperam é que ele e sua família sejam processados e condenados pelos crimes que cometeram. Afinal, uma democracia que não se defende, perece.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela PUC-RIO.