Concentração de renda e riqueza comparada

Thomas Piketty, em seu livro “Uma Breve História da Igualdade”, lançado em 2021, estuda o caso da concentração da riqueza na França. Após uma leve diminuição, durante a Revolução Francesa, a concentração da propriedade (ativos imobiliários, profissionais e financeiros, reduzidas as dívidas) no país cresceu, do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, antes de sofrer grande redução após as guerras e até os anos 1980. No total, a parcela detida pelo 1% mais rico passou de 55%, em 1910, para 24% em 2020, mas isso pouco beneficiou os 50% mais pobres, cuja participação passou de 2%, em 1910, para 6% em 2020.
Esses dados ilustram a tese geral apresentada no livro: por um lado, existe a longo prazo um movimento rumo à igualdade e, neste caso, rumo a uma menor concentração da propriedade e, portanto, do poder social e econômico; por outro, a desigualdade continua situada em um patamar extremamente alto. É possível alterar essa situação de desigualdade ou essa “bandeira-de-luta” é ilusória e, pior, tira o foco da possibilidade real de eliminar a pobreza em países onde ela assola grande parte da população?
Na prática, a parcela do 1% mais rico no total das propriedades privadas é, atualmente, mais de duas vezes menor diante o acumulado há um século, embora continue da ordem de cinco vezes mais elevada comparada à detida pelos 50% mais pobres.Hoje, só possuem mais de 5% do total a despeito do fato de serem, por definição, cinquenta vezes mais numerosos comparadoao 1% mais rico.
A parcela dos 50% mais pobres era, no século XIX e até o início do XX, de apenas 2%: algum progresso foi, portanto, alcançado em um século, embora infinitesimal. Na realidade, a desconcentração da propriedade se deu quase exclusivamente em favor dos grupos sociais situados entre o 1% mais rico e os 50% mais pobres, mas trouxe muito pouco benefício a estes. Eles quase sempre possuíram nada!
Para melhor compreender a evolução da distribuição monetária da propriedade, Pikettydistingue as diferentes categorias de bens e direitos possuídos. Ultrapassada a longa fase na históriada posse de outros seres humanos por meio da escravidão, classifica quatro grandes categorias de posse: a propriedade dos meios de produção, da moradia, do Estado (títulos de dívida pública) e do restante do mundo (investimentos no exterior).
Os meios de produção compreendem as terras agrícolas e os equipamentos, as fábricas e as máquinas, os escritórios e os computadores, os comércios e os restaurantes, os adiantamentos e o capital de giro, entre outros. Em termos mais gerais, envolvem todos os bens necessários para produzir outros bens e serviços.
Esses meios de produção são detidos diretamente pelo proprietário da empresa, ou então por meio de ações, obrigações, participações em sociedades ou outros títulos financeiros, ou, ainda, de modo indireto, por meio de depósitos e contas bancárias. Neste caso, é sobretudo o banco ou outro intermediário financeiro quem exerce o poder sobre as empresas nas quais decidem creditar ou investir, com base nos depósitos dos poupadores e das regras legais em vigor.
Segundo Piketty (2021), as moradias em geral representam parte considerável das propriedades privadas, na maioria das vezes em torno da metade, enquanto os meios de produção (tais como calculados pelo valor monetário das empresas) representam aproximadamente a outra metade. No caso da França, no início dos anos 2020, o total de propriedades privadas foi de cerca de 220 mil euros por adulto, ou seja, o equivalente a seis anos de renda média.Aproximadamente 110 mil euros foram relativos a moradias (deduzidas as dívidas) e 110 mil euros a bens profissionais e ativos financeiros.
Essa média dissimula imensas disparidades.Na França, bem como em todos os países nos quais tais dados estão disponíveis, os patrimônios mais baixos foram os compostos principalmente de ativos de liquidez e depósitos bancários; os patrimônios médios, de ativos imobiliários, e os patrimônios altos, de ativos financeiros, principalmente, ações.
Para os mais pobres, a própria noção de propriedade é relativamente abstrata.Alguns têm apenas dívidas, enquanto outros detêm, na melhor das hipóteses, alguns mil euros, por exemplo, um ou dois meses de salário adiantado, em ativos líquidos em uma conta bancária ou em uma caderneta de poupança.
O patrimônio médio detido pelos 50% mais pobres da “classe popular” é cerca de um décimo do patrimônio médio do total da população, daí uma parte da ordem de 5% do patrimônio total. O patrimônio mediano, abaixo do qual estão as posses de metade da população, é de cerca de 100 mil euros (R$ 635 mil), ou seja, cerca da metade do patrimôniopor adulto,sendo o patrimônio dos casais dividido por dois.
Os 40% seguintes da “classe média” são as pessoas compreendidas entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos.Seus patrimônios se escalonam aproximadamente entre 100 mil e 400 mil euros, principalmente em moradias.
Entre os 10% mais ricos, acima de 400 mil euros, a propriedade se torna cada vez mais diversificada: os bens profissionais e sobretudo os ativos financeiros (e, em particular, as ações) desempenham um papel crescente ao se aproximar do topo da hierarquia das fortunas. Eles se tornam preponderantes na faixa do 1% mais rico.Abaixo dela, mas acima de 1,8 milhão de euros, está a “classe abastada”.
Os indivíduos da “classe dominante” detêm cerca de 5 milhões de euros (quase R$ 32 milhões), ou seja, algo próximo a 25 vezes o patrimônio médio.Explica o motivo de sua parcela se aproximar de 25% do patrimônio total.
No Brasil,em 2022, cerca de 38,4 milhões de contribuintes apresentaram DIRPF.Só 10% dos declarantes de Imposto de Renda concentraram 51% da renda total deles. Pouco mais da metade deles concentravaapenas 14% do total de ganhos.
Considerando o valor dos rendimentos por faixas de salários mínimos, nas faixas até cinco, receberam 24% dos rendimentos totais. Acima de cinco até trintasalários-mínimos, receberam 30% dos rendimentos totais.O 1% mais rico no Brasil está acima desta faixa e recebe 45% do total de rendimentos.
Em comparação com toda a população da PNADC-IBGE, o Brasil, em 2023, a renda total apropriada pelos 10% com maiores rendimentos foi 41%ou 3,6 vezes maior diante o total de renda apropriado (11,4%) pelos 40% com menores rendimentos.A “classe média” (decis entre40% e 90%) recebia os 47,6% restantes.
Rendimentos tributáveis são 51% do total, rendimentos sujeitos à tributação exclusiva 15% e rendimentos isentos 34%. Nas faixas acima de trintasalários-mínimos, esses rendimentos isentos alcançaram em média 48% do total. Os 26 mil declarantes com rendimentos acima de 320 salários-mínimos receberam 24% do total de rendimentos isentos. Representaram 51% dos seus rendimentos!
Quanto ao valor dos bens e direitos por grupo e tipo, os bens imóveis representaram 34% do total, entre eles, apartamentos 12% e casas 10%. Os bens móveis – veículos, joias, quadros etc. – eram 7% do total. Participações societárias com ações, quotas, quinhões etc. alcançaram 17% do total. Aplicações financeiras foram 15%, créditos 4%, depósitos à vista e numerários (em espécie, inclusive moeda estrangeira) 5%, fundos diversos 8%, criptoativos 1%, outros bens e direitos 9%, dentre os quais o VGBL era 3% do total da riqueza de Pessoas Físicas.
Em 2022, no Brasil, 146,9 milhões ou 72,7% da populaçãomoravam em domicílios próprios. Neles, 63,6% da população residia em domicíliospróprios já pagos, herdados ou ganhos, e 9,1% em domicílios próprios ainda sendo pagos.
Na prática, segundo Piketty,as identidades de classe são sempre flexíveis e multidimensionais. Nunca podem ser reduzidas à transposição de um teto monetário qualquer, por exemplo, considere as depreciações da moeda nacional diante o dólarou o euro empobrecer “o brasileiro” no mercado externo, mas sem necessariamente cair seu poder aquisitivo no mercado interno.
A classe social depende não apenas da amplitude da detenção dos meios de produção e da moradia.Refere-se também ao nível de renda e de formação, à profissão e ao setor de atividade, à idade e ao gênero, às origens regionais ou estrangeiras, às vezes até da identidade etnorreligiosa. Varia de acordo com modalidades flexíveis e mutáveis em função dos contextos sócio-históricos.
Os ativos financeiros, mesmo correspondentes principalmente à propriedade das empresas e dos meios de produção, por meio de ações, obrigações, cotas societárias e outros títulos financeiros, representam também, em parte, a detenção de títulos públicos e do restante do mundo.A detenção de títulos da dívida pública representa, em todas as épocas, uma forma suplementar de deter o Estado, no sentido de este ser pressionado e acabar se desfazendo do possuído (empresas estatais e concessões públicas) para reembolsar suas dívidas.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].