Crônica satírica: Guerra Fria em clima quente

Apresento uma narrativa satírica, em forma de crônica política, sobre um governo saturado de militares doutrinados nos manuais da Guerra Fria. Pelo péssimo desempenho, o presidente perde a reeleição e decide não aceitar a alternância democrática. Alega temer “o fantasma comunista”, embora ele já não assombre sequer o Leste Europeu.
A sátira serve como crítica ao anacronismo político e ao delírio ideológico da extrema-direita. Recusam a realidade em nome de uma cruzada perdida.
Crônica Satírica: “Guerra Fria em Clima Quente”
Ou como se perdeu uma eleição em nome de um inimigo imaginário com sotaque soviético.
Era uma vez uma República tropical, com palmeiras, memes e um poder executivo mais parecido com um almoxarifado de fardas guardadas. No comando, um presidente incapaz, cercado por generais, coronéis e capitães da reserva — todos treinados no glorioso combate ao comunismo… em 1964.
O plano de governo era simples: salvar o país do marxismo, do globalismo, do climatismo e do identitarismo progressista para sacramentar a aliança sagrada com os pastores evangélicos e seu rebanho. Isto mesmo sem existir mais o tal comunismo, na prática, há muito extinto junto com a URSS, o Muro de Berlim e o VHS.
As tropas da retórica do populismo de extrema-direita, lambe-botas de bilionários norte-americanos, tinham 720 mil mortos em seu passivo. Eram devidos por negacionismo, negligência e inépcia em tomar providências a partir do cargo de maior mandatário.
O presidente, optante por misturar TFP (Tradição, Família e Propriedade) com zap-zap, acordava todos os dias em guerra contra algo. Seus ministros ainda liam tratados da Escola Superior de Guerra e citavam frases anticomunistas do século XX como se estivessem revelando o futuro. Em reuniões, falavam em “passar a boiada” e “infiltrados gramscianos” — na prática, apenas professores de Sociologia tentando pagar boletos.
A expressão “marxismo globalista” foi usada, naquele governo de extrema direita em contexto de conservadorismo, para denotar uma crítica ao considerado uma influência hegemônica de ideias de esquerda, particularmente na esfera cultural, política e econômica, em escala global. O temor propagado, “naquela altura do campeonato”, era o marxismo, como teoria e ideologia, ser usado para promover uma agenda de mudança social capaz de ameaçar a identidade nacional, as tradições e os valores conservadores.
O termo foi usado (e abusado) para atacar o considerado uma influência “vermelha” na cultura, educação e políticas públicas. Era uma forma de polarização e demonização. Visava dificultar o diálogo entre regiões e a construção de consensos e pactos nacionais.
Curiosamente, esse slogan político do pensamento político brasileiro de extrema direita foi divulgado por Olavo Carvalho – um ex-comunista com giro de 180 graus.
Toda medida social era vista como suspeita: “Distribuir livros? Isso é doutrinação. Distribuir armas? Isso é liberdade.”
E assim se governava: com patriotismo de tanque de guerra e um PowerPoint de Power Fantasy. O vídeo de reunião ministerial virou uma cena anedótica para rir…
Chegada, finalmente, a tentativa de reeleição, o presidente e seus generais lançaram um aviso: “Se o comunismo vencer, acaba o Brasil!” O comunismo, nesse caso, era um ex-sindicalista preso injustamente por 580 dias e capaz de pronunciar palavras perigosas como “redistribuição de renda” e “políticas sociais”.
Mesmo com a inflação, o desemprego e o feijão a preço de filé, a campanha oficial insistia: — Não é sobre comida, é sobre liberdade para empreendedores!
Mas o povo mais lúcido, cansado de retórica e cansado de não viver como antes, votou diferente. E o presidente perdeu.
Aí o pesadelo começou. Não para o povo, mas para o presidente ao encomendar a minuta da Operação Punhal Verde-e-Amarelo, depois do fracasso da Casa Verde-e-Amarela.
Diante da derrota, o alto-comando da nostalgia dos militares golpistas sem saberem dar novo golpe decidiu agir: marchas, rezas, acampamentos em frente de quartéis, caminhoneiros bloqueando estradas e tocando buzina como sinfonia golpista. Era a revolução dos saudosistas do regime militar ditatorial — porém, ninguém sabia direito contra quem (o recém-eleito? o Supremo Tribunal Federal? o Congresso?) e nem por qual razão.
Queriam impedir um governo “comunista”, diziam eles. Mas o comunismo já não existia no mundo havia mais de 30 anos! A China era capitalista. Cuba exportava médicos. A União Soviética virara uma exportadora de petróleo e gás para a Europa. Só eles, os ex-fardados, uniformizados na época da Guerra Fria, há mais de ½ século, não tinham percebido…
Mesmo assim, reuniram sua tropa de incautos como massa de manobra, em acampamentos em frente dos quarteis, clamaram para o Exército fazer “intervenção federal”, juraram fidelidade às “quatro linhas” da Constituição — a deles, uma minuta mal escrita a lápis em um caderno da caserna.
No fim, o golpe não veio. Nem o comunismo. Só o vexame de quebra-quebra, primeiro, em frente da PF e, depois, na Praça dos Três Poderes. Os idiotas, sem perceberem o mal feito a si e aos outros, perceberam depois as instituições republicanas não serem físicas.
As instituições são estruturas organizacionais, mecanismos ou sistemas de regras, normas e costumes capazes de regularem o comportamento dos indivíduos em uma sociedade. Elas podem ser tanto formais (como leis e constituições) quanto informais (como costumes e tradições), e têm o objetivo de organizar e estabilizar a vida social, influenciando as interações e o comportamento das pessoas, no caso, para manutenção do regime democrático-eleitoral com alternância de poder.
Epílogo: O bunker imaginário
Hoje, os velhos combatentes do anticomunismo vivem em grupos de WhatsApp, onde bodes-expiatórios como Stalin ainda respira, Che Guevara parece ser o Ministro da Educação, e a URSAL está prestes a ser instaurada com passaporte vermelho.
URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina) é um termo surgido como uma crítica irónica à proposta da Área de Livre Comércio das Américas. É utilizado pela extrema-direita para criticar a postura de alguns políticos e intelectuais de esquerda. Vê a Área de Livre Comércio das Américas como uma ameaça à soberania dos países latino-americanos e o caminho para o desenvolvimento de um bloco socialista na região.
Eles vivem no ano de 1964, embora o calendário marque 2025.
E o povo? Esse tenta seguir em frente. Pagando caro pelo voto equivocado no populismo de direita e por cada piada de mau gosto espalhada em nome da “liberdade”. Porque o verdadeiro preço da democracia, às vezes, é aguentar quem não sabe perder — recolocar o pijama e sair de cena se não pode mais voltar para a caserna.
Moral da História: nada mais patético senão lutar contra fantasmas do passado com tanques enferrujados pela vaidade — e perder para a realidade, insistente em ser presente.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].