Da guerra entre capitalismos à batalha entre socialismos

Da guerra entre capitalismos à batalha entre socialismos

A trajetória da “guerra entre capitalismos” à “batalha entre socialismos” descreve uma mudança no panorama ideológico e geopolítico global. Em vez de uma competição entre diferentes modelos de capitalismo, como se observou durante as Guerras Mundiais, o cenário atual, de acordo com Thomas Piketty, no livro “Uma Breve História da Igualdade” (2021), por causa do crescente descrédito do neoliberalismo, aponta para uma disputa entre diferentes visões de socialismo, com o modelo autoritário chinês em competição com o socialismo democrático.

Enquanto a “guerra entre capitalismos” se caracterizava pela competição entre diferentes modelos de livre mercado, com ênfase na desregulamentação e na redução do papel do Estado, a “batalha entre socialismos” coloca em oposição diferentes visões sobre o papel do Estado, a participação cidadã e a distribuição de renda e riquezas.

O socialismo autoritário chinês, com sua ênfase no controle estatal da economia e na vigilância digital, representa um modelo no qual se privilegia a eficiência econômica em detrimento das liberdades individuais e da democracia. Esse modelo, apesar de apresentar resultados em termos de crescimento econômico, enfrenta problemas de legitimidade, tanto internamente, devido à crescente desigualdade social e à repressão da dissidência, quanto externamente, pela falta de transparência e de respeito aos direitos humanos.

O socialismo democrático, proposto por Piketty, por sua vez, defende a expansão do Estado social, a implementação de impostos progressivos, a divisão do poder nas empresas, a democratização do sistema financeiro e a cooperação internacional para combater os paraísos fiscais e promover a justiça social globalmente. Esse modelo busca conciliar a busca por maior igualdade e justiça social com a preservação das liberdades individuais e a participação democrática.

A “batalha dos socialismos” coloca em questão qual modelo será mais capaz de responder aos problemas do século XXI, como a crise climática, a intensificação das desigualdades e a necessidade de garantir a justiça social em um mundo cada vez mais interconectado. O futuro dependerá da capacidade de mobilização social em torno de projetos alternativos, da correlação de forças políticas e da capacidade dos diferentes modelos de se adaptarem às demandas de uma sociedade em constante transformação.

Diferentemente, Branko Milanovic, no livro “Capitalismo Sem Rivais: O futuro do sistema que domina o mundo” (São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2020, 376 páginas), defende a tese de o capitalismo ter se tornado o único sistema socioeconômico dominante no mundo. Logo, a competição atual não é entre diferentes formas de socialismo, mas entre duas variantes do capitalismo: o capitalismo meritocrático liberal e o capitalismo político.

Segundo Milanovic, o socialismo, como sistema socioeconômico alternativo, não conseguiu se impor nos países mais desenvolvidos. Em vez disso, muitos países oriundos de colônia adotaram o socialismo como motivação ideológica para guerras de independência, mas acabaram evoluindo para o capitalismo.

O modelo de  Capitalismo Meritocrático Liberal se desenvolveu no Ocidente ao longo dos últimos duzentos anos. Ele é caracterizado pela produção realizada por meios de produção de propriedade privada, onde o capital contrata mão de obra livre e a coordenação é descentralizada.

Os Estados Unidos são apresentados como um exemplo desse tipo de capitalismo. Este modelo também se caracteriza por uma crença na importância da democracia e do Estado de Direito.

Em contraponto, o modelo  de Capitalismo Político é liderado pelo Estado, com a China sendo o principal exemplo. Mas ele também existe em outras partes da Ásia, Europa e África.

O Capitalismo Político combina o dinamismo do setor privado com a dominação eficiente da burocracia e um sistema político de partido único. Uma característica essencial deste modelo é a autonomia do Estado em relação a restrições legais e a possibilidade de tomar decisões de forma arbitrária.

A visão de Milanovic difere da de Piketty porque, enquanto este vê uma disputa entre diferentes visões de socialismo, ele argumenta: o capitalismo, em suas duas formas principais, é o sistema dominante. A competição se dá entre essas duas formas.

As experiências socialistas do século XX, em vez de apresentarem uma alternativa viável ao capitalismo, acabaram por pavimentar o caminho para o desenvolvimento do próprio capitalismo em muitos países.

Para Milanovic, a ascensão da Ásia, liderada pela China, é um dos processos marcantes do mundo atual. O sucesso econômico do capitalismo político chinês desafia a crença ocidental de existir uma ligação necessária entre capitalismo e democracia liberal.

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O capitalismo político contém características que o tornam atraente para as elites políticas e para as pessoas comuns em outras partes do mundo.

O capitalismo político possui características que o tornam atraente tanto para as elites políticas quanto para as pessoas comuns em outras partes do mundo por diferentes razões. Para as elites políticas, esse sistema centralizado passou a proporciona uma autonomia maior, permitindo agirem com menos restrições legais e com a possibilidade de tomar decisões de forma arbitrária. Isso lhes dá mais liberdade para implementar políticas sem a necessidade de consultar ou negociar com outros atores políticos, garantindo o poder ser concentrado em si.

O sistema centralizado, isto é, não parlamentar ou congressual, permite o uso do poder político para obter ganhos financeiros, seja por meio de concessões públicas, contratos seja por meio de outros mecanismos. A ausência do “império da lei” facilita a corrupção e o enriquecimento da classe política.

O Capitalismo Político, habitualmente associado a sistemas de partido único ou com um partido dominante por muitas décadas, permite as elites políticas se manterem no poder por longos períodos, sem a necessidade de alternância ou de eleições competitivas. Isso garante estabilidade e continuidade no poder para elas.

Para as pessoas comuns, o capitalismo político atrai por causa de prometer altas taxas de crescimento econômico e levar a melhorias no padrão de vida da população. A administração não só eficiente da economia, isto é, feita com qualidade e competência, é eficaz ao atingir o objetivo planejado pela deliberação do partido único. A capacidade de implementar projetos de infraestrutura rapidamente contribui para essa percepção social ou imaginário popular.

O Capitalismo Político foca na entrega de resultados tangíveis e materiais, como estradas, ferrovias e outras obras de infraestrutura. Essas melhorias na qualidade de vida são mais valorizadas diante a participação política ou a democracia.

Muitas pessoas estão dispostas a tolerar níveis moderados de corrupção, caso suas necessidades básicas sejam atendidas e seu padrão de vida melhore. Além disso, em algumas sociedades, a corrupção é vista como um meio de facilitar a vida cotidiana, um sistema de troca de favores visto como mais empático diante um sistema totalmente impessoal.

Em vez de longas discussões parlamentares ou congressuais sobre questões políticas, muitas vezes levadas à justiça “a se perder de vista”, as pessoas comuns preferem decisões rápidas de modo a levarem a resultados tangíveis. A falta de interesse em política, comum em muitas sociedades, faz as pessoas “alienadas” a valorizarem mais a eficiência diante a participação indireta nas decisões políticas, isto é, coletivas.

Além disso, o Capitalismo Político, como visto no exemplo da China, apresenta um modelo de desenvolvimento sem estar necessariamente ligado à democracia liberal. É atraente para países cuja maioria hegemônica (ou uma vanguarda vitoriosa) não deseja seguir o caminho ocidental.

A experiência chinesa demonstra o sucesso econômico ser possível sem a necessidade de uma democracia liberal, contrariando a crença ocidental de os dois sistemas serem inseparáveis. A China também tem se mostrado disposta a investir em outros países sem impor condições políticas, visto como uma vantagem para muitas nações diante o imperialismo norte-americano.

O sucesso do Capitalismo Político depende da sua capacidade de manter altas taxas de crescimento e um nível de corrupção tolerável. Caso essas condições não sejam atendidas, esse sistema centralizado perderá sua atratividade.

Em resumo, enquanto Thomas Piketty enfatiza uma luta ideológica entre Socialismo Autoritário e Socialismo Democrático, Branko Milanovic foca na competição entre duas variantes do capitalismo — Meritocrático Liberal e Político — consideradas por ele como os sistemas socioeconômicos dominantes no mundo contemporâneo.

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