Golpes digitais proliferam no Brasil e espalham desconfiança

Golpes digitais proliferam no Brasil e espalham desconfiança

Em 2024, o governo brasileiro lançou o programa “Celular Seguro” para coibir roubos de celulares, com aplicativos que permitem aos usuários localizar o dispositivo, emitir um alarme e apagar seus dados. Durante o ano, 183.362 desses dispositivos foram roubados. O Brasil tem 264 milhões de celulares e 212 milhões de habitantes. Imagem: Wilson Dias/Agência Brasil.

POR MARIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – A proliferação de golpes por meio de mídias digitais está criando uma sociedade desconfiada no Brasil e provavelmente em muitos outros países altamente digitalizados.

Muitos usuários de telefones celulares recebem chamadas de voz e mensagens de texto de fontes desconhecidas quase diariamente, seja para telemarketing ou, em muitos casos, para roubo financeiro por meio de esquemas como captura de dados bancários e senhas.

É um problema que afeta a todos, já que o Brasil tem 264 milhões desses aparelhos, mais conhecidos como celulares, em uso por uma população de 212 milhões, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações, órgão regulador oficial.

Lia Mendes, uma viúva de 71 anos, teve R$ 4.900 (US$ 870) sacados ilegalmente de sua conta na Caixa Econômica Federal, um banco estatal, em março, e não conseguiu recuperá-los.

Aparentemente, alguém invadiu sua conta bancária, já que o golpe coincidiu com um momento em que seu telefone ficou inativo, sem tela ou outras funções por quase duas horas. Quando ela voltou ao banco, não conseguiu acessar sua conta pelo aplicativo que lhe permitia fazer todas as suas operações bancárias.

Ele teve que ir ao banco acessar sua conta e descobriu que alguém havia sacado mais do que os R$ 4.400 (US$ 781) que ele tinha lá, por meio de duas transferências usando o Pix, o aplicativo criado pelo Banco Central do Brasil para transferências instantâneas, a qualquer hora do dia ou da noite, de uma conta bancária para outra.

“Além do golpe financeiro, a vítima sofre seus efeitos no cotidiano: vergonha por ser enganada; perda de confiança em si, nos outros, nas instituições e no governo que deveriam protegê-la; e dívidas que exigem ajuda de terceiros e fragilizam o convívio familiar”, Viviane Fernandes.

Eles também roubaram os 500 reais (89 dólares) que a Caixa Econômica permite que ele mantenha como saldo devedor, uma espécie de empréstimo automático para emergências de alguns dias, com juros altos.

“Fiquei sem dinheiro e endividada. Fiquei doente e agora preciso tomar remédios para hipertensão que nunca precisei antes”, reclamou Mendes à IPS por telefone de Manaus, capital do estado do norte do Amazonas, onde mora.

Parte do dinheiro roubado veio de um empréstimo “consignado”, que os aposentados recebem com juros baixos e cujo pagamento é descontado em parcelas mensais da aposentadoria. Ela havia recebido no dia anterior e tudo indica que o golpista tinha essa informação.

Sem o dinheiro, ela não conseguiria pagar as últimas parcelas mensais do carro adaptado para deficientes que sua filha precisava, pois os membros inferiores dela foram danificados em um acidente.

Registrar uma queixa na polícia e nos serviços de proteção ao consumidor não resolveu o caso. Ele tem que recorrer à justiça e para isso procura um advogado. O banco prometeu investigar a fraude e devolver o dinheiro em 10 dias, mas dois meses depois, ainda não o fez.

Golpes digitais estão cada vez mais comuns no Brasil, disseminando desconfiança na população, que recebe mensagens quase diariamente em seus celulares tentando capturar seus dados para roubar seu dinheiro. No Brasil, existem 264 milhões de celulares, em uma população de 212 milhões de habitantes.

Os diversos aplicativos instalados nos celulares fizeram deles o novo alvo dos golpistas no Brasil, principalmente porque muitas vezes permitem acesso a contas bancárias e senhas para roubar o dinheiro do dono. Imagem: Bruno Peres/Agência Brasil.

Quantidade epidêmica

Esse é um dos 15,5 milhões de “perdas financeiras” que os brasileiros sofreram nos últimos 12 meses, segundo estimativas da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC).

O número é resultado de uma pesquisa online na qual 41% dos entrevistados relataram já terem sido vítimas de fraude ou tentativa de fraude em instituições financeiras.

Pagamento antecipado por um produto ou serviço não fornecido, fraudes por meio de anúncios falsos de amigos em redes sociais, cartões de crédito clonados e apropriação indébita de contas bancárias são os golpes mais comuns.

Daqueles que negociaram com bancos, administradoras de cartão de crédito e outras empresas envolvidas, apenas 61% recuperaram o dinheiro roubado, e 21% recuperaram parcialmente. Dos entrevistados, 64% compartilham apenas informações pessoais essenciais e 53% desconfiam de ligações ou mensagens de estranhos.

Como todos têm familiares e amigos que sofreram golpes, e muitos também foram vítimas, a punição é generalizada. O Brasil desenvolveu uma ampla digitalização bancária há mais de três décadas, um processo que se intensificou com o uso generalizado de celulares (conhecidos como smartphones).

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O Pix, lançado pelo Banco Central em 2020, se tornou o sistema de pagamento mais utilizado no Brasil, superando cartões, transferências bancárias e cheques combinados. Em 2024, atingiu 63,8 bilhões de transações, 52% a mais que no ano anterior, segundo a Federação Brasileira de Bancos.

Digitalização da sociedade e do crime

Nesse mar de celulares, meios de pagamento, plataformas e aplicativos digitais, fraudes e golpes viraram uma epidemia. Em seus últimos relatórios anuais, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública destaca a migração de crimes como roubo para o ecossistema virtual.

É um processo global que pune as vítimas duplamente, culpando-as por se tornarem “desatentas, descuidadas e vulneráveis”, disse Viviane Fernandes, consultora do programa de telecomunicações e direitos digitais do não governamental Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

“Além do golpe financeiro, a vítima sofre seus efeitos no dia a dia: vergonha por ser enganada; perda de confiança em si, nos outros, nas instituições e no governo que deveriam protegê-la; e dívidas que exigem ajuda de terceiros e enfraquecem a vida familiar”, disse ela à IPS por telefone de São Paulo.

O envelhecimento da população aumenta a vulnerabilidade a fraudes digitais, e muitos são privados de suas economias, ele observou.

É por isso que é importante defender o direito das vítimas à reparação, especialmente por parte das instituições financeiras em cujos sistemas o dinheiro circula entre as vítimas e os fraudadores, disse ele.

Referência para o consumidor, o Idec atua em duas frentes: uma de prevenção, com base na divulgação de golpes diversos e orientações sobre como lidar com a tecnologia e proteger dados; e outra de incentivo ao governo e aos órgãos de defesa do consumidor para “criarem redes de cooperação e informação para combater fraudes”.

Golpes digitais estão cada vez mais comuns no Brasil, disseminando desconfiança na população, que recebe mensagens quase diariamente em seus celulares tentando capturar seus dados para roubar seu dinheiro. No Brasil, existem 264 milhões de celulares, em uma população de 212 milhões de habitantes.

As plataformas digitais levaram a comunicação a quase toda a população brasileira, mas também abriram caminho para a disseminação de informações falsas e a proliferação de crimes digitais, incluindo crimes financeiros. Imagem: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

Resistência

Uma campanha informativa do Idec, intitulada “A Era dos Golpes”, explica os oito esquemas mais comuns, incluindo o uso do WhatsApp e do telefone para solicitar dinheiro para parentes supostamente em dificuldades, cartões de crédito fraudulentos e falsos doadores de presentes ou funcionários de banco tentando obter dinheiro ou senhas.

Também é notável o roubo de celulares, cada vez mais utilizados para transações financeiras, para invadir contas de seus proprietários.

Para enfrentar a epidemia, Fernandes, antropólogo que pesquisa endividamento popular, direitos digitais e o Pix, acredita que é necessária uma maior colaboração entre todos os atores públicos e a sociedade civil para desestabilizar a criminalidade especializada e prevenir fraudes digitais.

Além disso, é necessário um tratamento coletivo para as vítimas, com orientação e reparação por meio de instituições às quais elas possam recorrer com confiança e segurança.

O grande número de casos comprova que a estrutura atual de prevenção é ineficaz e o sistema de justiça não consegue atender à demanda, reconheceu Fernandes.

No Brasil, há um sistema composto por programas de proteção e defesa do consumidor (Procon) que atendem vítimas em todos os 5.570 municípios brasileiros, uma defensoria pública que garante o acesso à justiça em todos os 26 estados e um Ministério Público de ação mais coletiva.

A Internet, que prometia democratizar as comunicações, se tornou “uma vergonha onde um pequeno grupo de programadores cria um aplicativo para vender apostas e atrair pessoas incautas”, lamentou Carlos Afonso, especialista em tecnologia da comunicação e um dos responsáveis ​​pela implementação da Internet no Brasil.

Técnicas comuns para enganar consumidores incluem mensagens como “seu cartão expirou” ou “atualize seu documento de identidade” por meio de plataformas digitais, especialmente WhatsApp, e e-mail, via celular ou computador, para capturar informações pessoais e senhas.

O celular, pequeno e fácil de roubar, contém aplicativos que abrem portas para bancos e outros tesouros. “É por isso que não tenho esses aplicativos ativos no meu celular e continuo não o levo comigo quando saio”, concluiu Afonso.

Artigo publicado originalmente na IPS.

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