Lembranças reflexas, como se fosse uma carta para Lula

Lembranças reflexas, como se fosse uma carta para Lula

Mais do que ser um terceiro governo Lula, será um novo governo. Não deve ser só o mesmo, melhorado,  mas outro. Muito outro.

Nesta manhã de 28 de dezembro de 2022 estamos – como muitos que escreveram de maneira incessante sobre estes quatro anos de terror e desesperança – assaltados por um misto de alegria e de expectativas sobre o futuro. Sou, como muitos da minha geração, um homem comum de família  vinda do interior do Rio Grande – Santiago, São Pedro do Sul, São Borja e finalmente Santa Maria – da geração que aderiu à militância socialista pelo heroísmo da Guerra de Libertação do Vietnam e pela utopia esperada na Revolução Cubana. Fui vereador em Santa Maria e devo a Porto Alegre a projeção nacional, que me permitiu ajudar o meu país, na sua reconstrução democrática que começa com a Constituição de 88.

A História luzia muito próxima de nós e não poderia ser ignorada pelos adolescentes que, como eu, amavam a política, Chico Buarque, Glauber Rocha e Jorge Amado. Ao longo da vida, todavia, estive  atento a uma sensata lição paterna que me parecia, à época, exagerada. Eu ouvia do Pai, desde a adolescência, o seguinte: “política não é profissão, cuida de ter uma profissão.” E outra sentença, na pré-adolescência, quando eu queria parar de estudar, porque a escola me aborrecia: “Esquece” -me dizia com enfado -“o Ginásio tu tira nem que seja de bengala!”.  Com a minha mãe aprendi desde cedo que deveria ler Tolstoi, Dostoiévski, Érico Veríssimo e Pasternak e com ele – meu pai – aprendi o francês e as melhores lições de tolerância, combinada com as virtudes da moderação sem perder os princípios.

Assim fiz e aqui estou. Prossigo como “político” militante – por fora das eleições – e retomei a minha profissão (permanente na minha consciência política) numa dupla condição de vida que  jamais abandonei, seja no outono de alguma desesperança, seja nas fibrilações de felicidade que também assaltam as nossas vidas. Nesta dupla condição, portanto, avoco-me o direito de hoje fazer um texto meio ambíguo, que misture um pouco a sensação de felicidade e a posse do Presidente Lula, com a preocupação solidária sobre o personagem Lula que, na sua figura quase épica, é o depósito das nossas esperanças. Dois pensamentos me assaltaram, desde a vitória apertada naquele dramático segundo turno: o passado é irresgatável, porque ele se modifica constantemente; e o futuro pode ser trágico, quando se pensa que ele pode ser escrito à nossa imagem e semelhança.

Posso dizer que conheço muito bem o Presidente Lula para afirmar que ele não será sufocado por qualquer um destes dois mitos que atacam as grandes personalidades da História que, pela ilusão da onipotência ou pela soberba, conseguem diluir o seu passado pela perda dos seus ideais originários, em momentos de pragmatismo sem princípios, ou mesmo obstruem o seu futuro, por excesso de voluntarismos juvenis. Lula é um dos quatro grandes líderes do país nos últimos 100 anos e o seu “Governo 3” – um Governo novo – será melhor que os demais. Mas o seu desafio não é somente ser “melhor”, mas é ser “outro”: antenado no mundo real em que tudo, dinheiro, prestígios, amizades, memórias, podem se dissipar rapidamente, como a própria vida num bombardeiro experimental na Ucrânia ou nos confins do russo, não mais soviético, muito menos utópico.

Penso que a aceitação numérica meramente ordinal “terceiro Governo Lula” precede uma questão – tanto mais ampla quanto mais complexa – que dá um significado distinto a este novo Governo. Mais do que ser um “terceiro”, é um “novo” Governo. Qual é este significado?  É que o “terceiro Governo” – “novo Governo”, não deve ser só o mesmo, melhorado,  mas outro. Muito outro. É mais do que um Governo modelar no combate à fome, que esteve atento à visão profética de Drummond, num poema clássico da sua obra espetacular, no qual Drummond dizia que “os homens pedem carne”. “Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.”

Não  basta oferecer bons direitos fundamentais nas leis, parecia dizer Drumond,  sem oferecer as substâncias para uma vida elementarmente feliz. Na mensagem mais universal do seu segundo Governo, Lula deu um exemplo para o mundo, que não deve ser substituído, mas ressignificado, nestes tempos mais ásperos de guerra e destruição planetária. A luta contra a fome precede a tudo, mas Lula sabe, à exaustão, que isso é apenas o fundamento inicial de um projeto de nação que, para não se estabilizar como mera política compensatória, precisa de muito mais do novo Governo. Creio que Lula entende que  seu terceiro Governo deverá ser agregado por novas prioridades estruturais, mas não custa solidariamente lembrar.

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Primeiro, que o trabalho social que compõe o tecido básico da vida e da riqueza desloca-se, rapidamente, da fábrica moderna e do seu sindicalismo corporativo, para os fluxos de dinheiro especulativos e produtivos, de mensagens culturais, de novas demandas sociais, de processos variados de construção científica e de diversificação das novas tecnologias;  sistemas originais de colaboração horizontal entre empresas emergem com as novas bases produtivas em plataformas inteligentes, que surgem e logo são superadas: pesquisa e produção, novos mercados e novas profissões, reluzem e – ao mesmo tempo – se dissipam e degradam o sistema do capital em escalas globais e nacionais. Destas transformações emerge um novo mundo do trabalho e um novo modo de vida, real e virtual, que está balizado pelos interesses dos trabalhadores industriais clássicos e tem novas demandas e novas formas de organização “sindical”  e das suas perspectivas políticas.

Novos esquemas de poder global, num novo momento de organização da violência e da geopolítica dos países que definem o sistema-mundo, exigem um refinamento especial das nossas relações exteriores. Sobre estas, temos experiências edificantes desde a “era Geisel”, com destaque  para os Governos progressistas na área, a partir de 88, período em que brilhamos em termos planetários especialmente nos  Governos Lula.  A  conexão do interno com o externo – tanto na economia como na Segurança Pública e na Segurança Nacional – demandam então uma revisão do Sistema Defesa Nacional, da Política econômica e do próprio Pacto Federativo, o que é urgente nas questões da Segurança Pública, que – no último período – esteve subordinada a uma relação “novo tipo” dos milicianos com o Estado, de forma completamente perversa e marginal às leis do país.

Entendo que a formação do Ministério do Governo Lula 3, revela mais uma vez o seu talento político excepcional e vai lhe permitir, imediatamente, incidir sobre a questão mais importante na conjuntura, face à aprovação da PEC do teto. Esta vantagem, todavia, vai se dissipar rapidamente, pois o combate à fome será  “naturalizado” pelas mesmas forças políticas que naturalizaram as políticas necrófilas de Bolsonaro, nas áreas da segurança e da saúde pública, até que a situação arrebentou. O Governo Bolsonaro, então, implodiu e explodiu e a sua crise interna, de aumento da corrupção e de assassinato dos protocolos, se combinou com o seu despretígio internacional completo.  A crise, portanto, começou a atrapalhar os negócios legítimos e os escusos, das classes dominantes, momento em que a armação da unidade neoliberal com o fascismo ruiu sem um estrondo, mas com um gemido.

Num próximo momento de crise da hegemonia neoliberal, além das concessões que  Lula deverá fazer para a base diversa do Governo, que nos apoia (parte dela fisiológica )  – neste preciso momento – a nossa política externa deverá estar profundamente articulada com as nossas políticas de recuperação econômica e de retomada da nossa soberania compartilhada no espaço internacional. Então o Presidente Lula vai se deparar com um outro verso de Drummond, para que o Brasil – integrado no mundo de forma novamente soberana – veja que seus “ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”. Difícil, complicado, mas real. É o que nos espera no próximo período num planeta dilacerado pela voracidade do capitalismo, com sociedades que perderam seu senso de solidariedade humana e do mínimo respeito à vida alheia e que precisa de mais, não menos democracia para saltar sobre o abismo.

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