Re-evolução sistêmica via inteligência artificial

A IA, como tecnologia, não tem um único modelo de negócio, mas várias formas complementares de extração e captura de valor. Isso inclui a venda de serviços de IA por assinatura (SaaS, APIs) em plataformas, a computação em nuvem (cloud computing), a extração e venda indireta de comportamento, perfis e padrões (dados), e consultoria e integração. Empresas como OpenAI (ChatGPT) são rentabilizadas via modelo freemium, API como serviço (IA-as-a-Service) e parcerias.
Gigantes como Google e Meta integram IA a ferramentas cotidianas. Naturalizam seu uso e dificultam a autonomia local, controlando fluxos de conhecimento e monetizando atenção via vigilância comportamental.
A lógica de plataforma altera profundamente a relação entre produtores, usuários e Estados ao reconfigurar os circuitos de produção, circulação e regulação sob uma nova forma de organização do capital: o Capitalismo de Plataforma. Baseia-se na intermediação digital, no controle dos dados e na extração contínua de valor informacional.
Plataformização é a consolidação de empresas digitais (como Google, Amazon, Meta, Microsoft) como intermediárias dominantes entre oferta e demanda de serviços, informações, atenção, trabalho e bens. Essas plataformas operam por meio de infraestrutura digital (cloud computing, APIs, data centers); modelos algorítmicos proprietários; monetização de dados comportamentais; dependência sistêmica de usuários e empresas.
Elas deixam de ser meras “ferramentas” e passam a organizar fluxos econômicos, afetivos e cognitivos. Ao controlar a infraestrutura e os dados, tornam-se quase indispensáveis para governos, empresas e cidadãos.
Nesse sentido, a IA é “financeirizada”, porque deixou de ser apenas uma tecnologia produtiva ou científica e passou a ser tratada como um ativo financeiro estratégico, dirigida por lógicas de valorização de capital e inserida em estruturas de poder. Estas priorizam a extração de lucro futuro, especulativo e contínuo.
Isso acontece quando modelos e empresas de IA são tratados como ativos especulativos com avaliações bilionárias de suas ações, isto é, das big techs, baseadas na promessa de domínio futuro. Investimentos são orientados por fundos de capital de risco – reúnem capital de diversos investidores para financiar startups e empresas em estágios iniciais de desenvolvimento, geralmente, com alto potencial de crescimento, embora com maior volatilidade – e grandes conglomerados. Modelos são fechados e monetizados como propriedade intelectual. O acesso à IA é mercantilizado e hierarquizado.
A financeirização reorienta o desenvolvimento da IA para a inovação. Esta gera lucro – eficiência empresarial, vigilância, consumo, controle comportamental –, em vez de bem-estar social.
Portanto, a financeirização da IA refere-se à sua transformação em ativo financeiro estratégico, tratado não apenas como tecnologia, mas como fonte de valor especulativo e instrumento de rentismo. Esse processo ocorre por meio de investimentos bilionários em startups de IA por fundos de risco, parcerias exclusivas com grandes empresas (ex: Microsoft e OpenAI), valorização de mercado de empresas sem lucro, baseada em promessas de domínio futuro, e serviços de IA por assinatura, gerando fluxo de receita previsível (modelo SaaS).
A IA torna-se assim mercadoria recorrente, com valor ancorado na fidelização dos usuários, na coleta contínua de dados e na integração invisível aos processos produtivos.
Um livro de autoria de Shoshana Zuboff trata da mutação da economia digital em um projeto comercial voraz chamado Capitalismo de Vigilância. Este novo tipo de capitalismo explora unilateralmente a experiência humana como matéria-prima gratuita por meio de dados comportamentais.
Superávit Comportamental refere-se aos dados coletados sobre o comportamento dos usuários online, indo além do necessário para o funcionamento do serviço. São dados como de navegação, compras, interações sociais etc. São a matéria-prima para a criação de produtos de vigilância, vendidos a anunciantes e outros clientes.
Zuboff vê o Capitalismo de Vigilância como uma nova encarnação ou “mutação econômica poderosa” capaz de se apropriar da natureza humana para prosperar. Ele se distancia do Capitalismo de Mercado histórico ao reivindicar liberdade e conhecimento irrestritos para si, abandonar reciprocidades com as pessoas ou a sociedade, e sustentar uma visão coletivista totalizante.
Governa pelo poder instrumentário, substitui o contrato, o Estado de Direito, a política e a confiança social por uma nova forma de soberania. É uma forma sem fronteiras em busca de controle sobre territórios humanos, sociais e políticos.
A experiência humana se torna uma “mercadoria fictícia”, renascendo como comportamento. A combinação de conhecimento e liberdade para os capitalistas de vigilância acelera a assimetria de poder.
A conclusão do livro de Zuboff é um chamado à ação democrática para confrontar e “domar” o Capitalismo de Vigilância. As leis existentes são insuficientes. Apenas “nós, o povo” podemos mudar a direção, mobilizando ação colaborativa para reafirmar um futuro humano. A democracia é o único canal para a reforma.
A IA representa, de fato, uma re-evolução sistêmica das forças produtivas ao automatizar capacidades cognitivas, acelerar processos e permitir a organização algorítmica de cadeias. Contudo, essa re-evolução é vista, na configuração atual, como interna ao sistema capitalista, expandindo sua racionalidade de eficiência, exploração e valorização.
A IA é motor da plataformização, financeirização, expansão do trabalho precário e vigilância algorítmica. Ela intensifica contradições internas do capitalismo, mas não o supera por si mesma. A IA está subsumida ao capital.
Apesar da subordinação atual ao capital, a IA contém potencial emancipatório se reapropriada coletivamente e articulada a projetos políticos transformadores. Isso exigiria a reconfiguração da propriedade dos meios computacionais (plataformas cooperativas, IA pública e democrática), governança descentralizada e ética dos dados, subordinação da técnica à finalidade social (sustentabilidade, bem comum), articulação internacional e luta política.
A IA como ferramenta de transição pós-capitalista operará dentro de uma disputa histórica maior. Uma IA democrática exigirá transformação estrutural, incluindo reapropriação coletiva, redistribuição do valor algorítmico e redefinição do conhecimento.
A estrutura de poder global emergente da economia de dados e da IA tem consequências assimétricas para países periféricos, questionando sua soberania tecnológica e cognitiva. Dados são um recurso estratégico. IA é uma infraestrutura cognitiva global. Logo, plataformas são formas de poder.
Em países periféricos, o uso da IA implica em dependência de plataformas privadas estrangeiras, ampliando a subordinação estrutural. Isso se deve à dependência de infraestrutura (data centers), controle sobre modelos fechados, controle algorítmico sobre fluxos de conhecimento e o regime de propriedade intelectual apropriador do conhecimento produzido com dados locais.
A fuga de valor cognitivo ocorre ao ser repatriado como serviços pagos. A IA não é neutra, porque está embutida em estruturas de poder e interesses de mercado.
Reproduz e reforça ideologia, mascarando decisões políticas como técnicas e naturalizando desigualdades. Em contextos periféricos, isso se agrava.
Romper essa lógica exige infraestrutura pública/cooperativa de IA, regulação de dados como bens comuns, desenvolvimento de modelos locais e políticas de soberania digital/tecnológica. A soberania digital é uma agenda política e civilizatória exigente de redistribuição do poder informacional, democratização da infraestrutura e dados, e reorientação da tecnologia para o bem comum.
A questão sobre se representa se a IA representa uma re-evolução sistêmica, a resposta é sim, uma nova evolução técnica, mas subsumida ao capital. Culmina nas questões políticas e na necessidade de luta pela soberania e por alternativas democráticas para reorientar a IA para fins sociais.

Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].