As urnas estão abertas: votos da população negra e latina serão decisivos

As urnas estão abertas: votos da população negra e latina serão decisivos

Começou a votação nos Estados Unidos, cujo sistema eleitoral depende da contagem manual de cédulas, o que pode demorar no resultado. Uma coisa, porém, é sabida: o voto dos negros e dos latinos fará a diferença no resultado. E dá-lhe Ricky Martin, jazz e black music no comício democrata.

POR TATIANA CARLOTTI, enviada especial do Fórum 21 para a Filadélfia.

As igrejas, as bibliotecas, as escolas e outros órgãos públicos abriram as portas às sete horas da manhã nesta terça-feira (5) aos milhões de eleitores dos Estados Unidos. Até agora, apenas de votos antecipados, foram mais de 78 milhões, quase a metade dos 154 milhões de votos registrados na eleição de 2020.

Com a expectativa de alta participação popular e clamando a todos que votem hoje, a vice-presidente e atual candidata democrata, Kamala Harris, despediu-se da corrida eleitoral em um showmício ontem à noite na Filadélfia, com a participação da pop star Lady Gaga, da banda de hip hop The Roots, do rapper americano Fat Joe, do latino Ricky Martin, da apresentadora Oprah Winfrey, entre outros.

No telão, enquanto todos aguardavam a chegada de Kamala, uma série de inserções com a participação em outros comícios de mais pop stars: Katy Perry, Jon Bon Jovi e muito, mas muito discurso, dela e de Tim Walz, seu vice-presidente e ex-governador de Minnesota que fez uma defesa dos direitos reprodutivos das mulheres americanas impecável.

Cada inserção, naturalmente, foi dirigida a um público mais do que específico, em particular, dois grupos: os negros que representam 13,4% da população estadunidense e os hispânicos e latinos, com 18,5%, segundo dados do Censo 2020. São eles, em particular os homens – as mulheres estão em peso com a democrata – que podem pender a balança para um lado ou para o outro.

Uma fila de três longas horas nas imediações do Museu de Arte da Filadélfia.

Nas filas, a empolgação e um público muito mais diversificado do que vi no comício de Trump no Madison Square Garden. Famílias inteiras e uma diversidade racial e étnica, proporção igual de mulheres e homens, muitos jovens e a população LGBTI+ em peso. Todos sob o slogan “Freedom”, porque aqui onde eles se autointitulam “América”, a liberdade é vendida como algo possível, pelo menos, a liberdade “para os americanos que trabalham duro”.

Trump, em praticamente todas as falas ontem, foi apresentado como uma ameaça, não só aos direitos individuais, mas também à democracia. Conversando com as pessoas na fila, a percepção foi muito mais de um voto pró-Kamala – inclusive em várias falas com ênfase nela como a melhor escolha, por sua trajetória e, sobretudo, suas promessas de ampliação de direitos –, do que um voto anti-Trump.

Mas isso, obviamente, dentro do showmício democrata, um oásis de não-pão, mas muito circo. Nas ruas, pelo menos entre os taxistas e os moradores da Susquehanna, ao Norte da cidade, onde me encontro, o anti-trumpismo será o grande vitorioso, caso Kamala vença. E “ela pode”, entoou a multidão, provocada várias vezes pelo DJ Cassidy, a quem coube animar o público e mantê-lo acordado até a chegada da democrata.     

Kamala Harris no telão do comício desta segunda-feira (4).

Já passava das onze e meia, quando ela subiu no palco diante da escadaria do Museu de Artes da Filadélfia, popularmente conhecida como “a escadaria do Rock”, em referência ao filme protagonizado por Sylveste Stallone nos anos 80.

Kamala não trouxe nenhuma novidade em relação ao discurso que vem fazendo até aqui. Reprisou os compromissos de campanha e vendeu o sonho americano estendido a toda a classe média estadunidense, que se fortalece (promete) caso vença. Defendeu a proteção do estado para a ampliação do acesso à habitação e saúde, em particular. Aos imigrantes, falou em respeito e na possibilidade deles crescerem na América.

Após um périplo de comícios nos “swings states”, onde disputa voto por voto a preferência dos indecisos com o republicano Donald Trump, ela escolheu a Filadélfia, cidade mais populosa da Pensilvânia, para encerrar a sua campanha. A decisão mais do que se justifica.

Segundo as pesquisas que tiveram destaque nas últimas semanas, o Partido Democrata vem perdendo o apoio dos jovens negros e latinos, seduzidos pela retórica de sucesso e pela postura caricata do bilionário de Nova York. Sondagem da GenForward, a pedido da Universidade de Chicago em meados de outubro, revelava um apoio a Trump de ¼ dos jovens negros e 44% dos jovens latinos, enquanto Kamala contaria com o apoio de 58% dos homens negros e de 37% dos homens latinos.

Entre as mulheres, mais sensíveis às políticas democratas e fortemente ameaçadas em suas liberdades reprodutivas, ela obtém maioria entre as negras (63%), as asiáticas (60%) e as latinas (55%). As mulheres brancas dos Estados Unidos apareceram divididas nas pesquisas: 44% pró Harris e 40% pró Trump.

O voto dos negros

Terra natal de Benjamin Franklin, do jazz e do crème de la crème da cultura norte-americana, “Philly”, como é chamada a Filadélfia, pulsa a luta civilizatória dos movimentos negros dos Estados Unidos, de ontem e de hoje. Em 2020, após o assassinato de George Floyd, asfixiado pela polícia branca de Minneapolis, a cidade viveu um levante puxado pelo movimento Black Lives Matter, que derrubou estátua por estátua de racistas da história americana.

Estatua de Frank Rizzo, prefeito racista da década de 1970 da cidade, derrubada pelos manifestantes. (Foto: Wikipedia: The Midnite Wolf).


Prestes a se tornar a primeira mulher negra presidente dos Estados Unidos, Kamala aproveitou o histórico de luta da cidade, para sensibilizar a população cuja maioria é negra, 39% ante 33,5% de brancos. Na Filadélfia que tem 22,7% de sua população abaixo da linha da pobreza, os negros são os mais afetados.

Em 2020, 12% dos negros dos Estados Unidos votaram em Trump. Segundo levantamento em The Guardian, entre 15 e 20% dos homens negros votam em republicanos, acompanhados de apenas 5 e 9% de mulheres negras. E a tendência está aumentando junto aos jovens. Para eles, Kamala prometeu futuro, educação, suporte para os jovens, recursos para a compra da primeira casa e emprego.

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O racismo e a truculência de Trump também ganharam a pauta, em particular, na fala contundente de Oprah Winfrey sobre a ameaça às liberdades democráticas caso o republicano volte à Casa Branca.

Oprah Winfrey

Conversar com as pessoas nas ruas pode não confirmar os dados, mas ajuda a entender os argumentos. E, neste caso, os números batem. Entre os homens mais velhos, a reação quando perguntei sobre Trump foi enfática. “Eu sou negro, claro que voto em Kamala”, disse-me um taxista nascido em Nova York, há oito anos na Filadélfia, com os olhos arregalados no espelho retrovisor.

O repúdio ao bilionário também foi manifestado por um morador do bairro negro onde me encontro que me disse, com ênfase, que “Trump é um diabo” e sua eleição, sem dúvidas, irá piorar e muito “a vida dos negros em todo os estados da América”.

O mesmo me disse um rapaz, na faixa dos 30 anos, segurando uma placa de Harris com seus braços magros e compridos. Ele frisou que com o republicano, a violência contra os negros vai aumentar, lembrando dos quatro anos de “desorganização trumpista no poder” e do apoio imperdoável do bilionário aos supremacistas de Charlottesville, na Virginia.

Estava convencida de que por aqui Trump não teria vez, quando abordei dois jovens negros que ouviam música na porta de casa. Ambos vão votar em Trump porque ele é rico, é um homem de negócios e vai trazer muito mais empregos do que a candidata democrata. O mesmo que ouvi nas filas do Madison Garden. Aproveitei para questionar sobre o governo Biden, mas eles foram unânimes ao dizer que a vida concreta deles não mudou absolutamente nada nos últimos anos.

Outra sondagem, da NAACP, também de outubro, apontava de que um a cada cinco negros mais jovens apoiariam Trump ante a falência dos governos democratas. Em meio a isso, o ex-presidente democrata Barack Obama, que obteve 93% de votos negros nas eleições de 2012, entrou em ação em defesa de Kamala:

“As mulheres em nossas vidas estiveram nos apoiando esse tempo todo. Quando temos problemas e o sistema não está funcionando para nós, elas são as que estão lá marchando e protestando (…) Por um lado, você tem alguém que cresceu como você, que te conhece e foi para a faculdade com você. Entende as lutas, a dor e a alegria dessas experiências. E, por outro lado, você tem alguém que consistentemente demonstra desrespeito, não apenas pelas comunidades, mas por você como pessoa”, apelou.

O voto dos latinos

O cantor latino Ricky Martin

Outro grupo que sempre esteve com os democratas, mas vem apresentando tendências republicanas é o dos hispânicos e latinos legalizados e residentes nos Estados Unidos. Em busca de simpatia, os democratas até bailaram e trouxeram o super latino Ricky Martin que chamou a comunidade toda para votar em Harris, nesta terça-feira.

Os hermanos, aliás, estão por todos os cantos. Nas máquinas onde se compra o bilhete do metrô ou se tira dinheiro, há sempre a opção do espanhol, além dos próprios latinos em massa no setor de serviços. É de uma esperteza tamanha a estratégia trumpista de jogar o pânico nas costas dos imigrantes. A velha retórica, essencialmente xenofóbica, mas que vem sendo encapada pelos que conseguem green card no país, em uma tentativa triste, e tão comum, de se afastar da pecha de ilegal.

Na Filadélfia, hispânicos e latinos representam 15,5% da população. Nos Estados Unidos, como um todo, eles são 18,5%. Ou 65 milhões de pessoas, sendo que somente 36 milhões têm direito a votar. “Os imigrantes sem documentação não votam”, lembra Alex Morales, CEO da IBD Advisors, que auxilia empresas latino-americanas e europeias nos Estados Unidos.

Questionado sobre o apoio da comunidade latina a Trump, Morales aponta que, de um modo geral, as pessoas “querem ver um líder forte e Trump passa essa segurança”. Destacando a importância dos latinos para a economia estadunidense, ele observa que se trata de uma população muito mais “pró-business”, composta por “pessoas que chegaram no país e que estão montando os seus negócios próprios, construindo as suas bases de vida”.

Para este grupo, a fala de Trump é atrativa. Bem como a tática de diferenciar os imigrantes legais dos ilegais. Morales, no entanto, avalia que pelo menos para a parcela de imigrantes ilegais hoje no país, os democratas “são muito melhores e mais humanos”.


Questionado se nós, da América Latina, devemos temer um próximo governo Trump, ele pensa que não. “O único país que irá sofrer com a presidência de Trump é o próprio Estados Unidos, com sua política de empoderar o branco americano, inclusive, com rifles. Isso criará problemas”, prevê.

Colégio eleitoral

Enquanto aguardamos o resultado das eleições nos Estados Unidos, muito mais demorado do que o nosso, afinal, eles ainda estão na contagem manual de cédulas, vale lembrar que o sistema de colégio eleitoral, pelo menos nos últimos anos, tem favorecido os republicanos que são barulhentos com Trump.

Foi assim, por exemplo, que George W Bush venceu Al Gore em 2000, emplacando a desastrosa “guerra contra o terror”. Foi assim, também, que Trump venceu a democrata Hillary Clinton em 2016. E do mesmo jeito, ele tentou vencer Biden pelo tapetão, ou melhor, ligando para a principal autoridade eleitoral do estado da Georgia, o republicano Brad Raffensperger e ordenando que ele “encontrasse” 11.780 votos em seu favor durante a eleição daquele ano.

Quem vazou o telefonema foi Washington Post, em janeiro de 2021. Até agora, Trump não respondeu por nada. O vale tudo impera e por isso é tão importante para os democratas cacifar a legitimidade com uma votação popular expressiva.

O showmício de ontem foi uma tentativa e tanto neste sentido.
Agora só nos resta acompanhar.


Fotos: Tatiana Carlotti/ Fórum 21 (CC)

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