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Cidade e campo: novas diásporas?

Cidade e campo: novas diásporas?

Dois detalhes sobre o filme documentário Cidade; Campo que acaba de estrear nos cinemas. O primeiro, o inusitado ponto-e-vírgula usado no título, mais forte que uma singela vírgula avizinhando uma região da outra, cidade e campo, sinal bem mais vigoroso do que o que apontaria para movimentos de vice-versa. O segundo detalhe, dentro do filme, é a distância que separa a primeira e a segunda parte da narração dessa história que se divide em dois episódios, contrários um do outro.

Cidade; Campo são dois filmes em um só, embora os movimentos sejam realizados para além do livre-arbítrio dos personagens. Nesse processo migratório forçado, o destino impõe a cada uma das três mulheres/protagonistas a despedida de uma vida feliz no campo, após o rompimento de uma barragem e da inundação de dejetos de mineração destruir sua pequena fazenda. Para as duas outras, o percurso é o contrário. Deixar a vida na grande cidade para viver no fundo da floresta, em uma propriedade mergulhada na mata e deixada para ela como herança de um pai falecido pouco antes.

A camponesa Joana migra para São Paulo e vai para a casa da irmã, Tânia, que mora em um bairro da periferia em companhia do neto, Jaime. Joana procura se sustentar e se manter na imensa ‘cidade do trabalho’ através da entrada no vasto mundo dos subempregos contemporâneos obtidos por aplicativos e trabalhando como faxineira em residências de classe média. Ela deixou o campo após sobreviver a um terrível crime ambiental em Minas Gerais.

No outro caso, é Flávia, com a companheira Mara, quem muda da cidade grande para uma fazenda herdada, onde as duas mulheres vão procurar novas oportunidades de vida campestre. A pequena casa do pai, semi-abandonada e em ruínas, deve ser reconstruída e o casal sofre um choque de realidade ao enfrentar a aspereza do cotidiano rural e experimentar o chá de ayahuasca, para os indígenas, o ‘vinho dos mortos’. Frustrações familiares e a força da natureza ao redor levam as duas a vivenciar memórias, lembranças e reviver fantasmas do passado.

No fundo, são duas narrativas de deslocamento em espaços em transformação. Movimentos remetendo aos idos dos anos 80 do século passado que motivaram extensos grupos de jovens – mas também de mulheres e homens de idade mais madura – a procurarem os centros urbanos, vindos do Brasil profundo, em procura de emprego e trabalho, ou o inverso: deixaram a dura vida nas cidades que já naquela época davam sinais da saturação que viria, rumo a uma existência mais singela e contemplativa. Aqui, em Cidade; Campo, as mudanças têm motivação mais realista. Provêm de constrangimento.

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O filme é de autoria de Juliana Rojas, de Campinas, e venceu este ano o prêmio de Melhor Direção na principal competição paralela do Festival de Berlim, intitulada Encounters. Juliana vem da Escola de Comunicação e Artes da USP e já tinha estado em Cannes com seu trabalho em 2004, com o curta-metragem O Lençol Branco. Este ano, ela também se fez notar. Sua atriz Fernanda Vianna levou o prêmio de melhor intérprete no mais recente Festival de Gramado. Juliana também é autora de Sinfonia da Necrópole, de 2014, e de As Boas Maneiras, de 2017.

Se o primeiro episódio de Cidade; Campo é exemplar, especialmente pelo suporte do excelente trabalho de Fernanda Vianna com o desenho seguro que a atriz desenvolve tendo em mãos o seu super sensível personagem, o segundo momento do filme traz uma narrativa até certo ponto desperdiçada, seguindo as descobertas e as certezas que sobem ao consciente das duas mulheres na floresta.

Embora as atrizes Mirella Façanha, fazendo Flávia, e Bruna Linzmeyer, interpretando sua namorada Mara, sejam corretas, a história se desfaz de aspectos importantes e se perde em detalhes secundários.

No entanto, Juliana, em entrevistas recentes, acentua, com toda razão, um aspecto importante presente nesse seu trabalho. Diz ela: “Como uma pessoa LGBTQIA+, eu sentia vontade de ver personagens como eu na tela, vivendo outras histórias que não fossem sobre o conflito de ser LGBTQIA+ ou de sofrer preconceito, mas que pudessem ter uma humanidade e outras vivências”.

Neste filme, duas imagens nos chamaram a atenção pela sua especial delicadeza, pela beleza e pelo simbólico: Fernanda Vianna despertando no meio da noite e ‘vendo’ um cavalo branco (seu?) caminhando vagarosamente pelas ruas da cidade. E outra: sentada na laje da casa simples onde passou a morar com a irmã, fumando seu cachimbo de caipira e vendo o sol nascer.

No fim, o recado é o mesmo para as três personagens construídas por Juliana (que também é roteirista do filme). A grande viagem, a grande mudança e o translado é o encontro com o mais profundo de nós.

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