Telas do Sul Global
É uma grata surpresa a explosão do cinema produzido em países do Sul Global, uma evidência inconteste neste atual interregno entre a ampliação e consolidação do grupo dos BRICS e a eleição presidencial estadunidense. Trata-se de um dos sinais da recuperação vigorosa dos movimentos culturais nessa região do sul do mundo, da cultura popular e da indústria de filmes realizados após um período de estagnação forçada e de vozes silenciadas submetidas à cultura dos países ocidentais fortemente industrializados.
Com uma maioria de documentários, de longas, curtas e médias-metragens, algumas dessas produções foram realizadas ainda durante o isolamento imposto pelo ataque viral e outras foram filmadas no recente período de pós-pandemia.
Acrescente-se a data de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que este ano está sendo festejado com um número inédito de eventos organizados em diversos estados do Brasil, o tema cinematográfico em países que emergem é notável, deve ser registrado e comemorado.
O cinema novíssimo nacional, brasileiro, assim como o cinema africano ou ganham telas dos cinemas e das TVs ou são inseridos nos catálogos de festivais, nas incontáveis sessões especiais, muitas delas gratuitas organizadas em dezenas de Mostras, em encontros de variadas instituições midiáticas e acadêmicas, e em agendas de debates políticos.
Mas o cinema do Sul Global ainda precisa lutar, muitas vezes com menos sucesso do que seria o esperado, para entrar nos repertórios dos canais de streaming multinacionais sustentados pelo poder do grande capital de origem estadunidense e europeia.
Como exemplo, apenas em levantamento sem pesquisa acurada, é possível listar os seguintes títulos de filmes brasileiros, muitos deles realizados por jovens cineastas em primeiras viagens, em cartaz ou já anunciados para estrearem na temporada de fim de ano que está chegando e no começo do próximo verão. Além daqueles que acabaram de deixar as telonas há poucas semanas e não encontram espaço no streaming.
A queda do céu; Apocalipse tropical; O dia da posse; Ainda estou aqui; Vitória; A flor do buriti; Intervenção; Milton Bituca Nascimento; Baby; Lampeão, governador do sertão; Saudade fez morada aqui; O deserto de Akin, Salão de baile, Ocupa São Paulo; Até a música parar, Malu são algumas das muitas produções brasileiras que circulam.
A notar que A flor do buriti, de Renée Nader Messora e João Salaviza, se encontra no streaming, é vencedor do prêmio coletivo para Melhor Elenco na Mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, e ganhou 14 prêmios em dezenas de festivais: Munique, Lima, Mar del Plata, Itália, Montréal, Biarritz, Viena, Belo Horizonte entre eles.
Participando desse boom, um evento importante está ocorrendo na TV Brasil. Encontros Com o Cinema Africano é uma série de cinco episódios com curadoria do cineasta e pesquisador mineiro Joel Zito Araújo e comemora o Mês da Consciência Negra. Os filmes selecionados são de diretores de diversos países do continente africano, vozes que também pressionam canais internacionais de exibição, cinemas e streaming, no sentido de serem mostrados ao grande público além de exibidos em eventos específicos e mais fechados.
“É uma história violenta, a história da África”, diz o premiado e respeitado cineasta mauritano Abderrahmane Sissako, autor do filme Esperando a felicidade (Heremakowo). “A violência africana está presente na violência da escravidão, na violência da colonização e, hoje, na violência da exploração”, comenta o diretor ao observar a exploração embutida em “ajudas” a governos africanos, nos investimentos que na realidade atendem interesses e necessidades dos países ocidentais.
Não surpreende que o cinema africano, como diz Sissako, “seja um cinema político mesmo quando de ficção”.
Aqui, a Associação Nacional das Distribuidoras Audiovisuais Independentes reclama: “A distribuição de filmes no Brasil, especialmente da produção nacional, enfrenta obstáculos para sua valorização e para a democratização do acesso à cultura”. O mercado, observa a ANDAI, é dominado por grandes empresas internacionais e pela concentração, o que dificulta a inserção de filmes independentes e autorais representando a diversidade cultural brasileira e a inovação estética e narrativa.
Representante de 19 distribuidoras brasileiras, a ANDAI produziu uma carta aberta, na semana passada, com o objetivo de divulgar seu manifesto de chamado à ação para “fortalecer a distribuição independente que mostre uma indústria audiovisual mais integrada, com políticas públicas e ações de mercado mais eficazes, e deem conta da pluralidade do nosso cinema”.
Em pesquisa apresentada no Fórum de Ideias da recente Mostra de São Paulo, os distribuidores independentes sublinham o lançamento de 400 títulos nos últimos 10 anos, atingindo em 2023 a marca de 45% de filmes brasileiros sendo 35% dirigidos por mulheres e com filmes de todas as regiões do país.
Neste sentido, em geral, a Associação Nacional das Distribuidoras Audiovisuais Independentes solicita “a garantia da regularidade e previsibilidade dos fomentos à distribuição incluindo linhas com fluxo contínuo, e o apoio automático para produções que já foram financiadas pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)”.
E também a “garantia da modulação por faixas de investimento na chamada pública de comercialização, contemplando projetos de diferentes tamanhos de lançamento, com um investimento mínimo de 250 mil reais”. Assim como aponta “ampliar o acesso ao Sistema de Controle de Bilheterias, garantindo informação em tempo real para distribuidoras brasileiras independentes e mensurar oficialmente o público, além das exibições comerciais de salas de cinema, incluindo público de sessões gratuitas e de outras janelas de exibição”.
Outro item da carta da ANDAI diz respeito ao estímulo a programas de formação de público que fortaleçam a presença do audiovisual brasileiro nas salas de cinema e em outras janelas de exibição.
E na conclusão do seu manifesto, conclama a “todos os agentes do setor audiovisual a se unirem na construção de um mercado mais justo, democrático e representativo que valorize a diversidade, que promova a relevância do cinema brasileiro e impulsione a sua internacionalização”.
O recado está dado nos dois lados do Atlântico Sul. Agora, mãos à obra. Mais telas brasileiras, mais telas africanas.
*Imagem em destaque: Reprodução/UFBA
Jornalista.