Capitalismo de vigilância em reprise
Documentário ‘O Dilema das Redes’ mostra como as redes sociais se transformam em armas nas mãos de grupos ditatoriais e estão ajudando, com êxito, na destruição de democracias saudáveis
No dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretava oficialmente o Estado de Emergência de Saúde Pública Internacional em um mundo contaminado pelo vírus da Covid-19. Meses depois, em setembro, o filme O Dilema das Redes era lançado no streaming deixando as plateias ainda mais perplexas do que um ano antes, quando o documentário A privacidade Hackeada, de 2019, se apresentou abordando tema semelhante.
Os dois filmes denunciavam o mal que o uso frenético das redes sociais em dispositivos eletrônicos pode fazer à saúde física e mental dos seus usuários e o desequilíbrio no comportamento social e político dos que disseminam nesses canais de relacionamento e nessas mídias de distribuição gratuita de conteúdos as suas fantasias paranóicas, ações violentas e informações falsas carregadas do ódio por aqueles que não partilham do seu ideário neofascista.
Três anos depois do grande sucesso de The Social Dilemma, o documentário dirigido por Jeff Orlowski-Yang, um ex-estudante egresso da Universidade de Stanford, de 39 anos, e roteirizado por ele e por seus colegas Davis Coombe e Vickie Curtis, continua no topo dos mais acessados da plataforma de streaming e agora se relaciona com o ranking recém-divulgado pela CupomValido.com.br com dados do The World Bank e Statista apontando o Brasil como o quinto país com maior número de proprietários de smartphones, no mundo. Atrás apenas da Índia, China, Estados Unidos e Indonésia – enquanto na Alemanha o número de usuários das redes sociais vem diminuindo.
Diante desses dados que remetem a um aumento do número de usuários das redes revimos o filme de Orlowski-Yang no qual se descreve a comunicação coletiva e on-line como uma “utopia e ao mesmo tempo uma distopia” que carece de regulamentação e onde nós somos um dado a ser programado. O filme nos traz o funcionamento do lado sombrio desses canais. Eles já interferiram nas eleições presidenciais do Brasil, dos Estados Unidos e no Brexit da Grã-Bretanha (caso da Cambridge Analytica) e continuam atuando na geopolítica mundial ao sabor de interesses de governos ou de poderosos grupos políticos e econômicos multinacionais.
O doc é pedagógico. No atacado, mostra como as redes ganham fortunas vendendo (atraindo) a atenção das pessoas, um dos valores mais cobiçados do mundo atual, ambiente histericamente narcisista. Grandes empresas pagam às big techs para que elas mostrem produtos que, inconscientes, os consumidores desejam adquirir. Nós, usuários/consumidores somos o produto a ser vendido pelas redes e não os clientes delas.
Isso ocorre porque o quadro é o do regime de “capitalismo de vigilância”, como o filme enfatiza. As empresas nos monitoram, coletam os nossos dados, observam as nossas ações e reações, as nossas conversas, nossas tristezas, decepções e nossas alegrias e realizações e nos bombardeiam com mensagens.
A inteligência artificial completa o serviço trabalhando com algoritmos e nos mantendo ‘engajados’. Antecipam tendências e preveem comportamentos criados pelos nossos desejos e medos.
O Dilema das Redes exibe personagens que funcionam como experimentos, que são fontes de lucros e são levados ao vício digital porque estudos científicos apontam que o uso prolongado das mídias sociais pode, realmente, causar dependência aos usuários e radicalizar ideologias políticas e religiosas.
Um dos entrevistados do doc, articulado com antigos integrantes das empresas do Vale do Silício, é Tristan Harris, ex-designer do Google. Ele percebeu que brechas na privacidade dos usuários e estímulos ao vício não são efeitos colaterais, mas sim “estratégias planejadas”. As redes funcionam como “chupetas digitais” jogando no ar informações que fazem o utilizador reagir como que sacudido e despertado na sua passividade por choques elétricos. As “chupetas” conseguem prever o que ele vai fazer sob sua influência.
O sistema é tão minucioso, diz Harris, que a estratégia se adapta a cada região do planeta e a cada ambiente do mundo onde vivemos, das zonas que sofrem diferentes níveis de mudanças climáticas e de aquecimento. Fenômenos do “novo normal” que são específicos a cada localização geográfica.
“Você é um dado e nós vamos programá-lo”, dizem e agem os especialistas que nos transformam em frankensteins digitais. Trabalham sem qualquer regulamentação nem sob leis que protejam a privacidade digital.
Também no doc, o professor da Universidade de Yale Edward Tufte chama atenção para o fato de que nesta Era da Desinformação, “existem apenas duas indústrias que classificam os clientes de usuários: a de drogas e a de software”.
A polarização sempre existiu, assim como a força da influência das mídias, completam os observadores do sistema; mas hoje, com as redes sociais, essa força é sete vezes maior do que antes, como detectaram as pesquisas. Os manipuladores políticos estão no paraíso e cada vez mais pretendem nos controlar – ou já nos controlam – em razão da personalidade psíquica de cada um e da nossa programação de dados reais.
A solução, comentam os entrevistados em O Dilema das Redes, é “complicada”. Vai depender da pressão popular dos… viciados, dizem. Mas enquanto isso, as redes sociais se transformam em armas nas mãos de grupos ditatoriais e estão ajudando, com êxito, na destruição de democracias saudáveis.
*O filme está disponível na Netflix.
**Imagem em destaque: Reprodução/Divulgação
Jornalista.