Mulheres do MST, muito para lá dos lugares-comuns

Mulheres do MST, muito para lá dos lugares-comuns

A obra “Mulheres assentadas. Mães de todas as lutas”, de Tamiris Volcean, é um conjunto de histórias que nos tiram do conforto ao tempo em que nos tonificam.

Eles dizem que nós somos Sem Terra, mas eu dei a minha vida por essa terra.
Carrego ela em mim, até debaixo das unhas. O que eu mais tenho é terra.

Diva Souza de Oliveira, mulher assentada



Quantas vezes ouvimos as vozes das mulheres sem terra? Das mulheres acampadas? Das mulheres assentadas? Das mulheres assentadas que viraram o jogo da opressão, da dominação, da discriminação, da violência doméstica?

Mulheres assentadas. Mães de todas as lutas é um conjunto de histórias verdadeiras, contadas por elas mesmas, que nos tiram do conforto dos chavões ao tempo em que nos tonificam, nestas épocas de grande desalento com os rumos da humanidade. Um livro que permite, se o leitor a isso se predispuser, eliminar preconceitos e enxergar os rostos e ouvir as vozes daquelas que enfrentam múltiplas jornadas na terra, na casa, na maternidade, criação dos filhos, na resistência ao machismo, muitas vezes, no convívio com homens agressores dentro de casa.

São quatro as histórias resumidas que se seguem, na tentativa de transmitir uma ideia do conteúdo desta obra fundamental para quem quer ir além dos lugares-comuns que nos rodeiam sobre quem são as mulheres que lutam no MST.


Diva e “as meninas da Unesp”

Dentre as 19 mulheres entrevistadas, pela autora Tamiris Volcean, estava a moradora do Assentamento Boa Esperança, Diva Souza de Oliveira, 54. Ela se aproximou de professoras e estudantes da Unesp, campus de Assis, para levar cestas de alimentos orgânicos para a cidade e retornar com muitos livros. Além dos segredos da agroecologia, Diva vê com clareza que independência financeira, educação continuada e desenvolvimento intelectual são condições indispensáveis para que as mulheres alcancem sua emancipação,  autonomia e liberdade.

“Não adianta só aprender a plantar, a gente precisa continuar lendo e estudando sempre, porque as coisas mudam muito rápido. Se eu quiser garantir a minha independência, tenho que me abrir para as coisas novas. É por isso que eu gosto de conversar com as meninas da Unesp, da universidade pública, porque elas me ensinam a respeitar o ritmo da terra e o meu. Lá atrás, eu achava que descanso era coisa de gente rica, mas agora, estudando agroecologia, eu entendo que se o solo precisa descansar, imagine só a gente”, defende Diva.

Cleonice e o nascimento de Lorena

Quando Cleonice Caraschi, 45, do Assentamento Horto de Aimorés, começou a senitr contrações não conseguia saber se chegaria a tempo ao hospital. Sozinha, conseguiu uma carona para o Hospital Estadual de Bauru. Chegou em trabalho de parto e foi submetida a uma cesariana sem que lhe tenham perguntado se autorizava esse procedimento. Questionada sobre o enxoval do bebe, revelou que era acampada e viu o tratamento dado a ela mudar. Umas das enfermeiras, porém, conseguiu roupas para a filha Lorena e ajudou com a passagem de ônibus para voltar ao acampamento. O hospital alegou que não poderia levá-las pois o acampamento estava fora de sua área de cobertura.

Cleonice com o pontos do corte latejando, tendo a filha com horas de vida nos braçços, logrou voltar ao acampamento. “Foi recebida pela família e pelos vizinhos com surpresa e solidariedade. Logo as moradoras dos barracos vizinhos estavam reunindo utensílios, roupas e alimentos para aqueles primeiros dias de vida da menina e da mãe recém- parida. Todo o espírito cooperativo daquele espaço estava em ação para que a recém-nascida tivesse condições de viver. A solidão deu uma trégua a Cleonice, e deu espaço para a construção de laços capazes de amenizar o desamparo”, narra Tamiris.

Ivone, Maria Cecília, Danúbia e a violência dentro de casa

Ivone José da Silva Carvalho, 62, moradora do Assentamento Zumbi dos Palmares, e Maria Cecília Barbosa, 68, moradora do Assentamento Zumbi dos Palmares, e o Café da Cecília (Fotos: Ricarda Canozo)


“Eu não ia contar não, mas vou falar. Eu sofri muito, apanhei muito dele, inclusive quando estava grávida. Foi só quando vim para cá, para o assentamento, que tomei uma atitude em minha vida”, revela Ivone José da Silva Carvalho, 62, moradora do Assentamento Zumbi dos Palmares.

Ela foi vítima de espancamento pelo marido por quase 40 anos, até que, amparada pela rede de apoio da cooperativa de mulheres do assentamento, adquiriu confiança para abrir um boletim de ocorrências, na companhia Maria Cecília Barbosa, 68, uma das lideranças da cooperativa, e ver-se livre do seu agressor. Não sem antes conseguir dar conta de sua subsistência, produzindo ovos, legumes e verduras com o que aprendeu com as companheiras da cooperativa.

“Eu sempre gostei de ajudar as mulheres a encontrar um caminho para que não precisassem aceitar tudo dentro de casa. Eu via companheiras apanhando, chorando, com olheiras enormes e cada vez mais magras, porque a depressão acaba com a gente. Eu me arrisquei muito, porque os companheiros não gostavam de me ver por perto, mas, no final das contas, foi bom poder ajudar essas mulheres e saber que elas tinham um ponto de apoio”, conta Maria Danúbia de Souza, 58, também uma das lideranças da cooperativa feminina.

Maria Aparecida Oliveira, 64, moradora do Assentamento Horto de Aimorés e Maria Danúbia de Souza, 58, moradora do Assentamento Zumbi dos Palmares (Fotos: Ricarda Canozo)

Maria Aparecida e envelhecer no campo

A história de Maria Aparecida Oliveira, 64, assentada no Horto de Aimorés, foi revolucionada aos 50 anos. Ela sustenta que passou a realmente viver só depois de se mudar para o campo. A casa, o roçado, os animais, a cisterna, vinda com outras políticas públicas nos governos Lula e Dilma, propiciam uma melhor qualidade de vida para seu caminho pela terceira idade.

“Eu não imagino como seria envelhecer na cidade. Se quando era jovem e saudável eu já era ignorada, imagine só agora, que eu mal posso andar direito. Com esse tanto de dificuldade e de problemas de saúde, estaria no lixo. Mas, aqui no campo é diferente. É por isso que quase nenhuma das companheiras da minha geração quer voltar para a cidade, porque aqui, apesar de ser tudo muito simples, a gente não se sente inválido. Hoje eu tenho certeza absoluta de que esse povo da cidade deveria tratar com mais respeito quem leva o alimento para a mesa deles”, desabafa Maria Aparecida Oliveira, 64, moradora do Assentamento Horto de Aimorés.


A autora e seu recado

Tamiris Volcean, ao terminar de narrar histórias muito duras, mas recheadas com o gozo de diversas vitórias, sintetiza:

“Ainda hoje, muita gente morre sem realizar o sonho de ter a própria terra, e leva consigo a ideia de seguir lutando por essa conquista. Apesar disso e contra todo o pessimismo que possa ter sido construído ao longo da apresentação desses capítulos, envelhecer no campo como proprietária da terra é a prova de que elas, as mães de todas as lutas, sobreviveram – e essa é a maior conquista de uma mulher que vive em uma realidade estruturalmente machista e patriarcal.”


Serviço

Título: Mulheres assentadas. Mães de todas as lutas
Autora: Tamiris Volcean
Orelha: Ana Manuela Chã
Capa: Coletivo Boitatá
Fotografia: Ricarda Canozo
Editora: Feminas
Lançamento: 24 de novembro, Casa Gueto, Flip, Paraty
Entrevista: Regina Zappa conversa com Tamiris Volcean https://youtu.be/9q-F6km0oYg


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